Por Davi Caldas

Um assíduo leitor do blog argumentou, em um comentário recente, que o texto de I João 2:4 é utilizado de modo desonesto pelos adventistas para constranger irmãos não adventistas. O texto em questão diz o seguinte: “Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso e nele não está a verdade”. Nosso crítico sustenta que não há nesse texto uma defesa do decálogo, pois sua interpretação correta estaria ligada às passagens de I João 3.23 e João 13:34. Na primeira lemos: “Ora, seu mandamento é este: que creiamos em o nome do Senhor Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o mandamento que nos ordenou”. E na segunda, as palavras do próprio Cristo, relatadas no evangelho de João: “Novo Mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”.

A proposta desse texto é demonstrar que os dois mandamentos em questão não anulam ou substituem o decálogo e que, portanto, a interpretação do texto de I João 2:4 feita pelos adventistas não está incorreta. Embora não estivesse previsto abordar o referido tema nessa semana, abrimos estes parênteses aqui, pois a crítica é interessante e não haverá problema em responde-la antes do texto programado anteriormente sobre a construção da teologia paulina. Este último ficará para a próxima postagem.

Considerações Iniciais

Há duas considerações iniciais que precisam ser feitas a respeito dos dois mandamentos destacados por João em sua epístola. A primeira é que eles não são mandamentos novos em essência. O mandamento de amar ao próximo já estava contido no Antigo Testamento, na passagem de Levítico 19:18. A inovação que trazia Jesus dizia respeito ao grau de amor requerido e, evidentemente, à forma expressa do mandamento. Enquanto que o grau de amor ao próximo requerido em Levítico era o amor que cada um tem por si mesmo, o parâmetro de amor que Jesus instituía agora era ainda mais elevado: cada um deveria amar como Ele amou. Muda-se o parâmetro e também a forma do mandamento. Não se encontraria esse mandamento, da forma como Cristo expressou, na Torá.

Quanto ao mandamento de crer no nome de Jesus, ele encontra sua base nas profecias e simbologias do Antigo Testamento a respeito do Messias. Ademais, é um desdobramento e/ou variante do mandamento de amar a Deus acima de todas as coisas, também incluso no Antigo Testamento. A fórmula joanina, portanto, não representa nada novo em sua essência, mas apenas na forma.

A segunda consideração é que os dois mandamentos expostos por João se constituem um modelo de resumo da Torá. Era bastante comum entre os mestres judeus enfatizar os preceitos da Torá através de resumos que expressassem todos os mandamentos. O professor de estudos judaicos Geza Vermes relembra esse fato em seu livro “Jesus e o mundo do judaísmo”, usando os exemplos de mestres conhecidos do judaísmo como Simlai, Filon, Hillel e Yohanan ben Zackai.

Quando, portanto, Jesus foi instado por um mestre fariseu a dizer qual era o principal mandamento da Torá (Mt 22:36-40 e Mc 12:28-31), essa solicitação e o resumo que Jesus apresentou devem ser compreendidos como algo habitual na cultura judaica dos primeiros séculos. Tais resumos não significavam, na cultura em questão, a exclusão dos outros mandamentos, mas apenas a exposição dos princípios basilares de toda a Torá. O poder de síntese de Jesus foi admirado pelos mestres inquiridores não porque seu resumo implicava a destruição da Torá, mas porque resumia bem a sua essência. Aqui fica claro que João fez uso de uma variante do resumo que Jesus formulara para os fariseus. A essência é a mesma, mas a forma foi desenvolvida para o contexto da nova aliança.

Com essas considerações em mente entendemos que os dois mandamentos mencionados por João estão intimamente associados aos antigos, já que são variantes de resumos dos mesmos. Desta maneira, a evocação desses novos mandamentos implica a evocação de mandamentos antigos, seguindo a tendência de resumo-ênfase presente na cultura judaica da época.

Preceitos Inclusivos

Vamos analisar mais profundamente o texto de I João 3:23 à luz dessas considerações que fizemos. Sustentamos aqui que os mandamentos ali mencionados são resumos e estão associados a outros mandamentos. Isso se torna evidente quando procuramos usar esses mandamentos não como resumos, mas como princípios completos. Vejamos.

Um homem pode praticar homossexualidade com um parceiro, mas crer sinceramente em Jesus Cristo e amar profundamente o seu próximo. Se entendermos os mandamentos em João como princípios completos, então esse homem claramente foi alcançado pela graça de Deus, justificado, santificado e salvo. Estará no céu. Mas opa! A Bíblia condena a prática da homossexualidade. Isso significa que embutido em algum dos mandamentos expostos de João está um mandamento negativo que proíbe esse tipo de relação.

Outro exemplo. Uma médica pode ser ateísta, agnóstica ou espírita, mas amar ao próximo à ponto de largar sua vida confortável no ocidente e ir para um local ermo do continente africano, numa região de extrema pobreza, próximo a zonas de guerras civis, apenas para cuidar de pessoas necessitadas. Ora, Paulo afirma em Romanos 13:8-10, que quem ama ao próximo cumpriu a Torá e que todos os mandamentos da Torá se resumem no preceito de amar ao próximo. Se entendermos as palavras de Paulo como princípios completos, então essa médica claramente foi alcançada pela graça de Deus, justificada, santificada e salva. Estará no céu. No entanto, sabemos que o amor ao próximo de nada vale para a salvação se a pessoa não crer em Cristo como Senhor e Salvador. Isso significa que, ou Paulo não viu necessidade em enfatizar a crença em Cristo nessa passagem, já que seus ouvintes eram cristãos, ou que em sua concepção o amor ao próximo estava atrelado aos mandamentos de amor a Deus (incluindo a crença em Cristo). Nas duas possibilidades, fica claro que o preceito do amor ao próximo não pode ser entendido como um princípio completo. Trata-se de uma síntese.

Um exemplo que podemos tirar da própria epístola de João está no capítulo 5, verso 21, onde lemos: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”. Esse é um mandamento que se encontra presente no decálogo e certamente está embutido no mandamento joanino de crer no nome do Senhor Jesus. Não fosse o caso, uma pessoa poderia crer em Jesus, amar o próximo, mas também manter seus ídolos. Sabemos que a Bíblia condena isso. Então, concluímos que o mandamento exposto por João é uma síntese que traz consigo também o preceito antigo de não adorar ídolos.

Um dos mandamentos dados por Cristo, aliás, é crer e ser batizado. Embora isso não seja dito no mandamento exposto por João, deve ser considerado, pois Cristo ordenou. Assim, se o mandamento fosse visto como completo, uma pessoa crente em Jesus Cristo poderia deliberadamente escolher não se batizar.

Expondo as coisas dessa forma, tudo pode parecer muito óbvio. Mas a explicação faz-se necessária para mostrar a verdadeira essência do pensamento judaico nessa questão. Os mandamentos “todo-inclusivos”, como classifica o professor Geza Vermes, carregavam em si os demais, todos atrelados. Nenhum judeu tradicional ou crente em Jesus entenderia o resumo oferecido por Cristo, ou a variante exposta por João, como um corpo completo de regras, mas sim como o resumo, a base, a essência, a partir do qual se entende o quadro completo.

Nesse sentido, é perfeitamente plausível afirmar que embutidos nos dois mandamentos expostos por João estavam diversos mandamentos antigos, tais como: não roubar, não matar, não adulterar, não cobiçar, honrar pai e mãe, não oferecer falso testemunho, não mentir, não fornicar, não praticar homossexualidade, ser misericordioso, perdoar, não adorar outros deuses, não adorar imagens de esculturas, não usar o nome de Deus em vão e etc. Todos esses mandamentos possuem como base, evidentemente, o amor a Deus e o amor ao próximo. E é apenas isso que o resumo pretende: demonstrar qual deve ser a base e a motivação para cada um dos mandamentos.

Afirmar, portanto, que o decálogo (e não só ele) está atrelado aos dois mandamentos expostos por João não é nenhuma desonestidade. É evidente que o resumo de João, uma variante do resumo de Jesus, expressa dezenas de mandamentos antigos que permanecem válidos e com sentido por terem em sua base o amor. Assim sendo, também não é absurdo dizer que o mandamento do sábado também pode estar incluído nesse resumo. Mas este já é o assunto do próximo texto, no qual vamos abordar a construção da teologia paulina, conforme já pontuado.

A ênfase no amor ao próximo

Antes de terminar o artigo, é interessante refletir sobre a razão pela qual o ministério de Jesus e, por conseguinte, o ministério dos discípulos e primeiros cristãos enfatizava tanto o amor pelas pessoas (no grau que Cristo amou). Essa era a maior deficiência do judaísmo prático legalista da época e, ao mesmo tempo, a grande mola propulsora capaz de empurrar os primeiros cristãos à evangelização de gentios nos confins da terra. Era ainda o elemento principal capaz de levar cristãos a suportarem perseguição e martírio. Um judeu tradicional da época seria capaz de morrer para não se prostrar diante de uma imagem (em obediência a uma das obrigações para com Deus), mas dificilmente morreria para levar o evangelho aos gentios.

O novo mandamento dado por Cristo é assim enfatizado porque era o elemento primordial para tornar vivo e eficaz a pregação do evangelho. Natural que do resumo apresentado por Cristo este mandamento acabasse por se tornar a síntese preferida dos mandamentos e de toda a mensagem da nova aliança, à ponto de por vezes embutir o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas (ou sua variante “crer em Cristo”) como se os dois fossem uma coisa só. No fim das contas, tudo deve ser visto como um só conjunto mesmo e o amor, em seu estado pleno, é a expressão que melhor abarca todos os deveres que se esperam de um salvo/santificado para com Deus e seu próximo.