Por Davi Caldas

No primeiro artigo sobre o assunto, nós analisamos o conceito de inferno eterno do ponto de vista bíblico, demonstrando que a ideia de um lugar de tormento infinito para almas imortais não está presente na mentalidade hebraica expressa nas Escrituras. Neste segundo artigo, analisaremos a ideia de inferno eterno do ponto de vista lógico-moral.

Muitos defensores do conceito de inferno eterno argumentam que a existência do mesmo é necessária, pois a punição aos ímpios deve levar em conta o fato de terem rejeitado Deus, um pecado de gravidade infinita. Assim, apenas uma punição infinita poderia ser justa. A intenção desse artigo é mostrar que essa tese está errada. O inferno eterno não é logicamente necessário para a justiça, mas ao contrário, sua existência não preencheria os requisitos básicos para fazer da condenação final algo justo e proveniente de um Deus amoroso e misericordioso.

Definição de justiça

Para fazer essa análise, devemos definir o que seria justiça. A resposta se relaciona às seguintes questões: para que serve a punição? Quais são os seus objetivos? O que faz dela justa ou não?

Do ponto de vista lógico, a punição possui os seguintes objetivos:

(A) Valorar o mau ato cometido – isto é, dar valor ao mau ato, no caso, valor negativo.

(B) Impedir (ou, no mínimo, tornar mais difícil) que ele seja cometido novamente pelo infrator;

(C) Servir de aviso para que outras pessoas saibam que tal ato é criminoso, que sua prática gerará punição e que, portanto, não devem cometê-lo – trata-se de uma função educativa, sua meta é, em suma, servir de desestímulo ao cometimento do crime;

(D) Gerar (se possível) arrependimento e regeneração no infrator.

A dor e o sofrimento do infrator não são fins em si mesmo, mas apenas meios para que estes objetivos possam ser cumpridos. Entender que fazer sofrer é um fim em si mesmo é confundir punição com retaliação. A punição é um ato de justiça. Baseia-se na necessidade de zelar por um padrão correto de conduta e rejeitar os desvios, mantendo assim a ordem moral. Diferente disso, a retaliação é um ato de ódio contra o infrator. Ela baseia-se no desejo de meramente fazer o infrator sofrer. Os demais objetivos deixam de ser as finalidades.

Nós, humanos, como seres pecadores geralmente almejamos a retaliação dos nossos piores inimigos. Nós odiamos a eles e não apenas aos pecados deles. Queremos, portanto, vê-los sofrer muito, sendo isso um fim em si mesmo. Era por esta razão que Jonas não queria que o povo de Nínive se arrependesse. Ele queria ver a dor e o sofrimento deles. Deus nos ensina, na Bíblia, que isso não é correto. Devemos odiar o pecado com todas as forças, mas amar os pecadores e orar pelos nossos inimigos. Isso não combina com o sentimento de retaliação.

Deus, como perfeito, odeia o pecado, mas ama os pecadores. Assim, Ele não tem qualquer interesse ou ímpeto de retaliar pecadores. Isso, além de ser contrário a sua atitude de amor, é inútil. Fazer sofrer por fazer sofrer é algo que advém de nossas paixões carnais. É algo inútil e irracional. Deus, como Juiz Supremo e amoroso, não tem esse sentimento. Ele tem interesse em fazer justiça (o que é perfeitamente útil, necessário e moral). Ou seja, Deus não retalha, mas pune, a fim de fazer justiça.

Aplicação prática

O que devemos fazer agora é aplicar essas reflexões à punição final dos ímpios. Certamente eles precisam ser punidos. E apunição deve ser de duração infinita, já que eles rejeitaram a Cristo e não podem, evidentemente, ter parte na vida eterna. Ademais, pecaram contra o próprio Deus, o que torna seus pecados infinitamente graves. Mas, para que a punição seja uma obra de justiça, não meramente de retaliação, ela deve cumprir os objetivos básicos de uma punição, conforme vimos acima.

Ora, há duas opções de punição: a que resulta na morte eterna do indivíduo e a que resulta no tormento eterno. Vamos supor que Deus escolha a primeira opção. Ela consistiria na incineração no lago de fogo seguida da morte plena (aniquilacionismo). Quais objetivos são cumpridos nessa punição? O objetivo (A) será cumprido? Sim. Não há aqui impunidade. Todos os ímpios são torturados no fogo e varridos da existência.

Não podemos chamar tal punição de “recompensa”, como alguns alegam. Ser queimado causa uma das piores dores que existem. A agonia de ser totalmente queimado certamente é terrível. Da mesma forma é terrivelmente angustiante lutar contra uma morte lenta, brutal e dolorosa. Qualquer pessoa preferiria, em tendo de escolher, morrer dormindo, com um tiro rápido na nuca ou uma injeção letal. Mortes rápidas e pouco dolorosas. Até o enforcamento e a guilhotina são “boas” pedidas. Ninguém escolheria uma morte por afogamento, linchamento ou incineração. E eu garanto que ninguém morre com prazer e tranquilidade em uma dessas situações.

Ademais, a morte por si só é algo horroroso. Não pela morte em si, já que, se ela realmente é literal e total, não proporciona sensações e pensamentos ao morto. O problema da morte está nos momentos de consciência antes da morte. A consciência de que a existência se perderá abre um abismo diante da maioria das pessoas. A vida é valiosa. Não é natural querer morrer. Nem mesmo os suicidas desejam a morte. Eles escolhem a morte quando pensam não haver mais sentido na vida. Ainda assim, eles não costumam escolher mortes demoradas.

É evidente, portanto, que estamos falando de uma punição. Há que se ressaltar ainda que essa punição final estaria unida à sentimentos de remorso em muitos corações, de humilhação, de derrota, de desespero, de acusações mútuas e de inconformidade. Não devemos, portanto, dizer que esta hipótese de punição seria uma “recompensa”.

Tal punição consegue valorar os crimes cometidos pelos ímpios, os quais podem ser resumidos em um crime só, aliás: negar a Jesus. Ela não deixa o crime impune e marca bem a distinção entre bons e maus atos, já que os justos ganharão a vida eterna, sem mais sofrimento e ao lado de Deus. Fica bem estabelecido o valor positivo de aceitar a Jesus e o valor negativo de negá-lo.

O objetivo (B) será cumprido? Sim e com eficácia plena. Com a morte eterna após o sofrimento no lago e fogo, o criminoso nunca mais tornará a cometer nenhum crime, nenhum pecado. O universo fica livre do pecado e tanto Deus como a justiça (que é atributo de Deus) e a lei (que se baseia na natureza justa de Deus) deixam de ser ofendidos para sempre.

O objetivo (C) será cumprido? Sim. Ficará claro para todos os seres inteligentes criados por Deus que o pecado é algo ruim e que além de trazer graves consequências para o universo, implica a necessidade de punição dos pecadores.

O objetivo (D) será cumprido? Não será possível. Não por uma falha na punição, mas porque estes infratores se resignaram contra o Espírito de Deus (que torna possível o arrependimento), inviabilizando a possibilidade de se arrependerem um dia. É por isso que a punição é final. Não há mais possibilidades de conversão. O objetivo (D), no entanto, é sempre uma possibilidade, então o seu não cumprimento (por escolha do próprio infrator) não torna a punição inválida ou injusta.

Estes quatro objetivos são sempre buscados por Deus. Eles também estão presentes quando Deus pune seus próprios filhos. E mesmo nós, humanos, nos orientamos por estes objetivos quando punimos nossos filhos. Não desejamos retaliar nossas crianças, machucar simplesmente para ver sofrer. A finalidade não é essa e isso não nos é útil. A dor é necessária, mas não é um fim em si mesmo; é um meio. Não sentimos prazer em causar sofrimento num filho. Mas nós o fazemos com estes quatro objetivos em mente. Isso é punição. Isso é justiça. O que passa disso é retaliação e ódio. Talvez seja por isso que o cristianismo até permita que o Estado puna um criminoso hediondo com a pena de morte. Mas não permitiria que o Estado condenasse um criminoso a ser retaliado perpetuamente na prisão, infringindo nele dor física através de murros diários, banhos de gelo, queimaduras, pauladas e choques elétricos por décadas, até a sua morte natural. Qualquer cristão genuíno não concordaria com isso. Por quê? Porque Deus deu ao Estado autoridade para punir, não para retaliar. A pena de morte é aceitada por Deus (mesmo Ele tendo vedado o assassinato – são duas coisas distintas). Mas a retaliação, não.

A aceitação da retaliação como finalidade cria uma moral disforme entre os homens. É comum eu ver pessoas bradando que o criminoso, aqui na terra, deve sofrer muito na cadeia. Eu mesmo tenho esse desejo quando vejo certas barbaridades. Mas entendo que isso é um desejo carnal e não espiritual. Trata-se de um impulso não baseado nem na razão, nem na moral. É um impulso pecaminoso. Passado o momento de raiva, o meu impulso se desfaz e volto à razão. O que eu quero da prisão não é que ela retalhe o criminoso, mas apenas que o isole (para que não mais cause problemas para a sociedade), valore negativamente seu ato, sirva de desestímulo (um aviso) para que outros não façam o mesmo e, se possível, dê ao criminoso a possibilidade de se arrepender e se regenerar. A mera retaliação não me é útil. Só serve para alimentar o meu ódio não contra o crime, mas contra os criminosos.

Agora, façamos o inverso. Vamos supor que Deus escolheu como punição para os ímpios um lago de fogo que queima eternamente os ímpios. Será que os objetivos aqui elencados são cumpridos? Não, não são. O objetivo (A) se cumpre apenas parcialmente: o crime é valorado, mas com distorções graves. Primeira: as injustiças distintas são punidas igualmente. Segundo: os ímpios são punidos eternamente por pecados finitos cometidos em uma vida finita. Terceiro: apesar de totalmente distante de Deus para sempre, ainda assim o infrator continua tendo um atributo divino: a vida. Por mais que seja uma vida de miserável, ainda é uma vida, um atributo de Deus, mantido por Deus. Isso não condiz com a ideia de que sem Deus somos nada. A perda de todos os atributos divinos seria mais coerente para quem rejeitou a Deus.

O objetivo (B) não se cumpre nem de modo parcial, pois o ímpio continuará cometendo pecado eternamente. Sua punição imortaliza o pecado e cria um universo que jamais se renderá plenamente a Deus, à justiça e à lei. Nesse universo, sempre haverá sofrimento. Um sofrimento inútil, pois não tem por finalidade a conversão, mas a mera retaliação. Não há, pois, eficiência plena nesta punição, visto que ela não acaba com o crime. Uma punição que acaba com o crime é claramente mais eficaz que uma punição que o imortaliza.

Ademais, o sofrimento destes implicará tristeza eterna de Deus e os justos salvos, pelas dores infringidas aos injustos. Ou então, implicará a cauterização do sentimento de piedade, fazendo ninguém sentir tristeza por este sofrimento eterno. Nós devemos lembrar que odiar o pecado não pode se confundir com odiar o pecador. Assim, desejar a punição do crime não é o mesmo que desejar a retaliação. E desejar a imortalização do crime para uma eterna punição não deixa de ser um desejo pela retaliação, já que esta imortalização não tem objetivos. A finalidade deixa de ser extinguir a injustiça (o que é justo) e passa a ser o de mantê-la para punir o ímpio para sempre. Trata-se de clara retaliação.

O objetivo (C) também não se cumpre totalmente aqui. De fato, os justos não irão cometer pecados após a punição dos ímpios. Por outro lado, os ímpios, mesmo vendo a punição de seus companheiros de “inferno”, não deixarão de pecar. E isso é algo que poderia ser evitado se houvesse aniquilação. Ou seja, o problema é causado pela própria natureza da punição.

O objetivo (D) também não é cumprido, mas como no outro caso, é irrelevante, pois a culpa disso não está na natureza das punições, mas na resignação dos punidos.

Concluo, portanto, que a punição de um inferno eterno é menos eficiente e se baseia não em justiça, mas em retaliação. Ela não possui razão de ser e contradiz o amor, pois extrapola a justiça para dar lugar a um sentimento humano de ódio ao pecador em vez de ódio ao pecado. Sendo Deus onipotente, não necessariamente precisaria se prender a esta natureza de punição.

Além disso, ressalto que a punição justa não requer que os punidos tenham consciência pela eternidade. O fato de os mortos não mais sofrerem não faz da morte um prêmio, tampouco atrapalha os objetivos da punição. Todos os objetivos (à exceção do quarto, o que é irrelevante aqui) são preenchidos adequadamente e a morte é, por definição, o fim de um dom de Deus (o qual torna possíveis todos os outros). Assim, a morte é a negação de todas as bênçãos, o que inclui a possibilidade de estar em sua presença. Ainda que o infrator só tenha consciência disso nos momentos anteriores à morte, isso não muda a essência do que é a morte. A negação de todas as bênçãos é, portanto, uma sentença justa para quem desejava tê-las sem, contudo, se dobrar ao abençoador. Para quem ficou vivo isso será, aliás, eternamente instrutivo.

O problema do argumento da autoridade/glória divina

Um dos argumentos de quem sustenta o inferno eterno para defender a sua necessidade e justiça é que o objetivo supremo dessa punição seria a exaltação da autoridade e da glória divina. É o mesmo argumento usado por quem defende que Deus predestina uns ao céu e outros ao inferno. De alguma maneira, o tormento eterno de alguns exaltaria a majestade de Deus.

Há vários problemas nesse argumento. O primeiro é que não faz sentido supor que Deus é exaltado pela dor eterna de alguns. Ele é exaltado por ser Deus, por ser onipotente, onisciente, onipresente, justo, amoroso, benevolente, perdoador, salvador, consolador. Manter uma dor eterna na verdade traria o efeito contrário: Deus estaria se rebaixando aos pensamentos vingativos e carnais dos seres humanos quando caídos.

O segundo é que a ideia de o inferno eterno ser necessário para a glória de Deus (assim como a predestinação individual, no caso dos reformados e calvinistas) acaba por tornar o pecado e o sofrimento como necessários para Deus. Deus precisa do pecado e do sofrimento para que sua glória se torne maior (ou mais evidente). Sob esse prisma, fica claro que Deus deixa de ser entendido como ser maximamente glorioso em si mesmo. Ele passa a depender de um fator externo (e mau) para que sua glória aumente (ou se torne mais evidente). Isso contradiz muito do que a Bíblia e a própria lógica testificam de Deus. Como ser absoluto, perfeito e acima de tudo, Deus não pode depender de nenhum fator externo para se tornar mais glorioso, mais completo e com melhores atributos.

É fato que a Bíblia menciona atos de Deus cujos objetivos são exaltar/evidenciar a sua glória. Mas deve-se notar que a ideia expressa nesses relatos não é de que Deus era menos glorioso ou sua glória menos evidente por natureza, necessitando do pecado e do sofrimento para uma calibrada. A glória do Senhor foi a mesma desde sempre. Nada pode reduzi-la ou aumenta-la. O que mudou foi a percepção dessa glória por parte dos homens. Com o advento do pecado, a glória de Deus se tornou menor e menos perceptível aos olhos do ser humano. Quando, portanto, o Senhor faz algo para a sua glória, está visando não a sua glória propriamente, mas a percepção dela pelas pessoas.

Ora, se é justamente o pecado que reduz essa percepção no homem, é ilógico supor que Deus precisa do pecado para aumentar a percepção da sua glória. O pecado é o mal, o problema, o câncer, a grande anomalia do universo, o extremo oposto de Deus. Sem o pecado, há perfeição. Sem o pecado, a percepção da glória de Deus é exatamente como deve ser, sem defeito. Supor que Deus criou o pecado para a sua glória é inverter tudo, colocando o pecado como algo necessário e positivo, como um antídoto, um remédio para uma limitação divina.

O conceito de inferno eterno como uma necessidade ontológica (e também a doutrina da predestinação) dá um tiro no próprio pé de quem o defende. Com o desejo de destacar Deus como soberano e glorioso, o conceito acaba por fazer Deus dependente do pecado e da dor eterna de seres pecadores para ser mais glorioso ou evidenciar mais essa glória.

Conclusão

Vimos que o inferno eterno não é logicamente necessário. Ao contrário, ele é logicamente desnecessário e a sua defesa implica graves distorções na retratação da justiça, da natureza e até da supremacia de Deus. Por essa razão, ela não encontra apoio na Bíblia, conforme vimos na primeira parte dessa pequena série. Num próximo artigo, estudaremos, na Bíblia, sobre a questão do estado dos mortos, desmistificando o pilar do conceito de inferno eterno: a imortalidade da alma.