Por Davi Caldas

Decidi ouvir, nesse último sábado, à tarde, todo um podcast do Yago Martins com participação de Guilherme Nunes e Romulo Monteiro, sobre a questão do mandamento do sábado na Bíblia. E depois, para complementar, ouvi uma boa parte de outro podcast dos mesmos sobre a lei no Antigo Testamento (que é anterior ao do sábado). À época que saiu o que falou do sábado, muita gente me marcou, pedindo que eu assistisse e que o RA fizesse um vídeo-resposta. Bom, faltou tempo e disposição, tanto pra ouvir, quanto pra fazer uma resposta. Como “antes tarde do que nunca”, faço agora algumas ponderações por escrito mesmo. Não é uma resposta a eles (tanto que não quis usar esse nome no título), mas aos argumentos por eles utilizados.

Ponderação 1: A interpretação de Gênesis 2:1-3

Há um grande esforço de Yago, Guilherme e Romulo para tentar retirar da instituição do sábado, em Gênesis 2:1-3, qualquer relação com um descanso literal para o ser humano. No esquema argumentativo deles, o sábado ali precisa ser exclusivamente um símbolo do descanso em Cristo. Só dessa forma, ele perde a finalidade prática quando Cristo vem, tal como a circuncisão, as festas, os sacrificios de animais e as leis civis teocráticas. E sem finalidade prática, pode ser descartado, definido como mandamento abolido na cruz, taxado de obsoleto.

Para fazer isso, esses caros irmãos (falo sem ironia, pois eles fazem mesmo um ótimo trabalho em muitas frentes), seguem o seguinte roteiro: (A) descartam a ideia de que Gênesis 2:1-3 é explicado por Êxodo 20:8-11; (B) pressupõem que a omissão da expressão “tarde e manhã” após o dia de sábado (como ocorre nos outros dias) é indicativo de que o sábado não termina, não podendo ser, então, um dia literal, mas apenas um símbolo de um descanso em Cristo; (C) se apegam ao “argumento do silêncio”, concluindo que como não há relato de Adão, Enoque, Noé, Abraão e outros antes de Moisés guardando o sábado, isso não existia.

Esse roteiro é bastante questionável. No ponto (A), eles assumem que não dá para concluir que o sábado deve ser guardado como dia a partir de Gênesis 2:1-3. De fato, o texto sozinho apenas afirma que Deus santificou o sétimo dia. O que isso significa, na prática, para o homem, não é dito. Não se deve esquecer, contudo, que Moisés escreveu tanto Gênesis como Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A questão do sábado, conquanto seja colocada de maneira mais simples em Gênesis, apenas como parte de uma história resumida, é detalhadamente explicada nos demais livros.

A Bíblia toda segue o mesmo método: os assuntos são complementados, explicados, detalhados nos livros que se seguem. Não há razão para se exigir que todos os temas sejam abordados profundamente em cada passagem. Assim, é natural esperar que o texto de Gênesis seja melhor explicado mais adiante. E é. Fica claro nos livros seguintes que a aplicação prática de Gênesis 2:1-3 era a guarda de um dia literal e específico: o sábado.

No ponto (B), há uma pressuposição que não pode ser provada, apenas inferida. A omissão de expressão tarde e manhã no fim do relato não necessariamente indica que o dia não tem fim. Isso nem faz sentido, já que o relato trata de uma semana literal e o mandamento do sábado é formalizado nas tábuas da lei como se referindo a um dia. Essa omissão pode significar simplesmente que a semana acabava ali. Moisés usa a expressão entre um dia e outro. Usá-la ao fim do sábado seria, de certa forma, incluir o primeiro dia da outra semana na criação.

Outra razão pode ter sido justamente a de criar uma distinção estilística no texto. Sendo o dia de sábado distinto dos demais, Moisés pode ter visto a necessidade de dar uma quebra rítmica no texto. Ainda outra razão pode ser a de marcar o fim da expectativa, no texto, de que mais algo seria criado. O leitor vê, a cada “foi-se tarde e manhã”, mais uma criação. Omitir essa frase no sábado é uma forma de dizer: a criação acabou aqui. Não tem mais nada depois. Em todos os casos, a ideia de uma semana fica bem clara. Supor que a razão só pode ser a que o dia não tem fim, não é literal, etc. é se agarrar a algo que não pode ser provado, nem considerado provável.

No ponto (C), há o argumento do silêncio. Esse argumento, quando usado para provar algo de modo cabal, é sempre uma falácia lógica. Isso porque o silêncio ou a ausência de algo não necessariamente prova sua inexistência. Sempre há hipóteses alternativas (por vezes bastante prováveis) que podem explicar o silêncio ou ausência de algo. No caso de relatos da guarda do sábado por patriarcas anteriores a Moisés, isso pode não ter sido mencionado por Gênesis ser apenas um resumo bem sucinto de mais de dois mil e quinhentos anos de história. Ademais, Gênesis, o primeiro livro de Moisés, tem objetivo muito mais histórico do que legal. É nos quatro demais que Moisés vai tratar extensivamente de leis. Assim, ele pode ter estruturado Gênesis para apenas citar sutilmente alguns pontos que ele abordaria em detalhe nas outras obras, com foco na legislação. Uma vez que os livros são integrados, como a Bíblia também o é, não há problema algum em um livro explicar e ampliar o outro. É o que se espera.

Dito isso, é mais natural concluir que o relato de Gênesis 2:1-3 fala da instituição de um dia literal de descanso para o ser humano, com foco nas atividades espirituais. Esse dia, deve-se lembrar, é instituído antes do pecado. Ou seja, não pode ter relação com rituais relacionados exclusivamente ao sistema de sacrifícios, à Israel e à antiga aliança. Assim, revela-se claro que o sábado possui sim, em sua origem, a função prática de prover descanso literal ao homem. Ela também tem, como função original, rememorar que Yahweh é o Deus Criador descrito em Gênesis, como expliquei em outro texto.

Uma vez que se admite essa função prática original, por mais que outras funções possam se somar à instituição depois, elas não podem abolir a primeira. Então, se o sábado passa a simbolizar depois também a saída do povo hebreu do Egito e o descanso em Cristo, isso não anula a primeira função prática. Assim, mesmo que na nova aliança, relembrar o êxodo ou simbolizar o descanso vindouro em Cristo se tornem desnecessários, continua sendo importante o dia literal de descanso e memorial de que Yahweh é criador.

Curioso é que, após o extenso vídeo, os irmãos acabam concordando tacitamente com o fato de que é importante, bom e recomendável haver um dia de descanso e culto por semana. É notório que em argumentações anti-guarda do sábado, sempre se conclua no fim que o ser humano precisa do sábado (pelo menos de algo parecido). É algo que sempre me faz pensar sobre como o valor prático (que é a função original) nunca se perdeu e que, portanto, não há sentido na ideia de abolição. Há um abismo entre o sábado e os demais rituais sem essa necessidade imperativa e valor prático em si mesmos.

Ponderação 2: A interpretação de Mateus 12:5

Há uma interpretação bizarra de Yago, Guilherme e Romulo em relação ao texto de Mateus 12:5. No meio de uma discussão sobre o sábado, Jesus questiona aos fariseus se eles não leram na Torá que os sacerdotes violam o sábado no templo, fazendo o trabalho de sacerdote nesse dia.

Yago e os demais, surpreendentemente, entendem que Jesus estava sendo literal, isto é, que a lei de Deus realmente era contraditória, ordenando a guarda do sábado e, ao mesmo tempo, a transgressão dele pelos sacerdotes.

O problema dessa interpretação é que a Bíblia diz que a lei do Senhor é perfeita (Sl 19:7) e que Deus deu seus mandamentos para cumprirmos à risca (Sl 119:4). Isso é algo que se pode chegar à conclusão até pela lógica, sem Bíblia. Se Deus é perfeito, não pode criar uma lei contraditória. Ela pode ser até temporária e algo melhor, prometido por Deus, vir depois. Mas não pode ser incoerente. Isso seria chamar o próprio Deus de incoerente.

Claramente, Jesus é irônico com os fariseus. Seu raciocínio é: se o conceito de “trabalho” dos fariseus está correto, então até mesmo os sacerdotes transgridem o sábado, pois estão desempenhando suas atividades diárias no templo. É óbvio que tal interpretação é absurda. A atividade dos sacerdotes era espiritual. Jamais representou uma quebra do mandamento divino. Jesus está chamando a atenção para o fato de que os fariseus não sabem definir o que é trabalho. E não o sabem porque não possuem ideia de qual seja a essência do mandamento sabático.

Para Jesus, a essência de todos os mandamentos, incluindo o sábado, estavam no amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Nenhum mandamento poderia ser cumprido corretamente se não estivesse fincado nesses dois. Por isso era licito fazer o bem aos sábados e não erravam seus discípulos ao fazerem um lanche enquanto passavam por uma colheita. Nada disso era “trabalho”.

Há uma tendência curiosa em alguns teólogos anti sabatistas, de tentarem projetar em Jesus alguém que transgrediu o sábado durante seu ministério. Ora, ainda que o sábado realmente tivesse sido abolido depois da morte e ressurreição de Cristo, durante o seu ministério ainda vigorava toda a Lei. E Jesus veio na forma humana, com a missão de ser plenamente fiel, um judeu perfeito. Seu sacrifício não valeria se ele quebrasse as leis de Deus-Pai. Cumpria a Cristo ser perfeito em tudo e seguir todas as determinações da lei, a fim de ser tornado apto para nos substituir como Cordeiro sem mácula (Hb 4:15, II Co 5:21, I Pd 1:18-19). De fato, na própria concepção de Jesus, já nas últimas horas de sua vida, ele cumpria os mandamentos de Deus (Jo 15:10).

Pensar em um Jesus que muda as regras, que quebra mandamentos antes do fim da antiga aliança, que não se põe como um exemplo de judeu que era requerido por Deus até então, é ignorar a sua missão e contradizer a própria Bíblia. Jesus foi fiel em todas as coisas e por isso se tornou sacrifício perfeito. Assim, também o sábado foi fielmente cumprido por Ele. É um erro interpretativo grave defender que Jesus fez mudanças no sábado. Ele fez foi resgatar a essência o sábado.

Ponderação 3: Generalização

Yago e os demais irmãos, usando textos de Romanos, Gálatas e Colossenses em que Paulo de dias que não precisam mais ser guardados, argumentam que tais passagens precisam estar falando de todos os dias. Não pode haver exceção. O problema desse argumento é que muitas vezes palavras de sentido absoluto estão ligadas a um contexto específico, não abarcando outros. Há vários exemplos. Em I Coríntios 10:27, Paulo diz o seguinte:

“Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência; porque do Senhor é a terra e a sua plenitude. Se algum dentre os incrédulos vos convidar, e quiserdes ir, comei de tudo o que for posto diante de vós, sem nada perguntardes por motivo de consciência” (I Co 10:25-27).

Se entendermos esse “comei e tudo” de maneira absoluta, esse texto poderia justificar até mesmo a antropofagia. Qualquer sociedade acostumada a comer pedaços de pessoas mortas poderia pegar esses versos isolados e dizer: “Paulo disse que podemos comer de tudo”. Mas sabemos que o apóstolo não está se referindo a absolutamente tudo, pois o assunto abordado no contexto da passagem são alimentos sacrificados aos ídolos, tema que o apóstolo também aborda no capítulo sete.

Em Filipenses 4:13 lemos Paulo dizendo: “Tudo posso naquele que me fortalece”. Se não lermos o contexto, podemos concluir que podemos fazer qualquer coisa se tivermos o Senhor. Mas no contexto, o apóstolo fala sobre como ele aprendeu a viver em diversas situações diferentes: na riqueza, na pobreza, na honra, na humilhação, etc. Então, esse “tudo posso” tem a ver não com o que o apóstolo poderia fazer, mas com que situações da vida poderia viver.

Em Salmos 37:4 lemos o seguinte: “Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará os desejos do teu coração”. Se isso for entendido de modo absoluto então tudo o que desejarmos Deus irá conceder se nos agradarmos dele. Mas é óbvio que o autor não estava pensando em desejos impuros quando escreveu o texto (até porque quem se agrada do Senhor não terá muitos desejos impuros). E também é óbvio que nem sempre Deus nos concede nossos desejos, mesmo que sejam lícitos. O texto deve ser entendido como uma tendência de Deus que o salmista procura enfatizar em sua poesia: Ele procura satisfazer os desejos dos que se agradam dEle. Contudo, Ele só o fará quando tais desejos se coadunarem com seus planos maiores. Assim, “os desejos” não se traduzem como “todos os desejos” aqui, mas como “todos os desejos que não entrarem em conflito com os planos maiores de Deus”. É uma concepção bem mais limitada do que a passagem descontextualizada sugere.

Então, sim, é preciso analisar com cuidado os textos em que Paulo fala sobre dias que não são mais necessários observar. Ele pode perfeitamente não incluir o sábado por alguma razão. Mas isso só dá para saber analisando-se o contexto imediato da passagem, do livro, do momento histórico do escrito e da Bíblia Sagrada como um todo. E há boas razões (as quais não abordarei nesse texto) para não considerar que as passagens de Romanos, Gálatas e Colossenses colocam o sábado no mesmo saco de dias que não tem mais valor prático e foram abolidos com o sacrifício de Cristo.

Conclusão

Gosto muito do trabalho apologético do Yago Martins e seus amigos que contribuem nos seus canais midiáticos. Compartilho frequentemente seus vídeos. Sem dúvida, é um cristão verdadeiro, que ama o Senhor e com o que tem ajudado muitas pessoas a serem mais fieis a Cristo e defenderem bem a sua fé. Contudo, até os melhores teólogos às vezes fazem uma má teologia. Foi o caso deles nesses podcasts. Os argumentos foram rasos e, algumas vezes, pouco bíblicos.

Não quis me aprofundar mais nas análises porque esses conteúdos têm sido abordados por mim em outros textos. Procurei ser mais pontual e focar mais nas falhas argumentativas do que propriamente na defesa da nossa posição pró-sábado (o que, como já disse, tenho feito em outros textos). Espero que Yago e outros que discordam da guarda do sábado repensem seus argumentos algum dia, tornando-se bons teólogos também nesse assunto.