Por Davi Caldas

O capítulo 15 de Atos dos Apóstolos narra um concílio em Jerusalém envolvendo os apóstolos e outras lideranças da Igreja primitiva. O assunto do Concílio era deliberar sobre a necessidade ou não de gentios (não-judeus) conversos a Cristo serem circuncidados e seguirem todas as regras da Torá para serem salvos. Após muita discussão, o concílio chegou à conclusão de que não era necessário os gentios se submeterem ao rito, mas absterem-se de relações sexuais ilícitas, coisas sacrificadas aos ídolos, carne de animais sufocados e sangue.

Muitos cristãos usam esse texto para sustentarem que a distinção de alimentos puros e impuros da Torá e o sábado não são mais válidos para os cristãos (ou, pelo menos, para os cristãos gentios). O argumento é que tais coisas não são citadas pelos apóstolos como essenciais.

O problema do argumento

O problema fundamental desse argumento é bastante óbvio: uma porção de abstenções essenciais para a vida de um cristão não é citada no texto. Por exemplo, não é dito pelos apóstolos que os conversos gentios devem se abster de bebedeira. Também nada é dito sobre glutonaria. E sabemos que tais posturas eram comuns entre gentios. Da mesma forma, o texto não fala a respeito de aborto, abandono de crianças, desonra aos pais, uso do nome de Deus em vão, cobiça, furto, homicídio, inveja, vingança, divorcio, violência aos servos, autoflagelação, adulteração da Palavra de Deus.

Saindo do rol das abstenções, o texto tampouco cita práticas positivas que deveriam ser realizadas pelos cristãos, tais como dízimos, ofertas, batismo e santa ceia. Nem mesmo as bases da lei – amor a Deus acima de todas as coisas e amor ao próximo como a nós mesmos – são mencionadas em Atos 15.

Devemos concluir que os gentios estavam livres de todas essas abstenções e práticas positivas apenas porque elas não constam na lista apostólica do Concílio de Jerusalém em Atos 15? Claro que não! Então, por que usar essa lógica para o sábado e a distinção entre alimentos puros e impuros? Não faz sentido. Dois pesos, duas medidas. Ou nós entendemos que os princípios impostos no Concílio eram um resumo de algo maior e que já pressupunha a guarda de outros mandamentos pelos gentios, ou entendemos que eram só aqueles mesmos e mais nenhum outro.

Como fica claro, a grande dificuldade aqui é que muitos intérpretes cristãos querem usar o texto de Atos 15 para jogar fora da vida do cristão apenas aquilo que não desejam mais ver como válido. É uma postura self-service (pego só o que quero da Escritura) e, ademais, raciocínio circular: o Concílio prova a abolição do sábado e da distinção entre alimentos porque o sábado e a distinção entre alimentos foi abolida, logo o Concílio o aboliu. Percebe? A conclusão já é o pressuposto.

Paradoxalmente, a maioria daqueles que tenta usar Atos 15 para dizer só aqueles quatro princípios devem ser guardados pelos cristãos não teriam esse escrúpulo para rejeitar os animais sufocados, o sangue e os alimentos sacrificados aos ídolos (três dos quatro princípios deixados pelos apóstolos). E no caso de cristãos moderninhos que justificam divórcio por incompatibilidade de gênios ou até mesmo sexo antes do casamento e homossexualidade, o princípio sobre imoralidade sexual também vai para o ralo. Em suma, as únicas quatro coisas que os cristãos deveriam se abster na vida (segundo essa interpretação errônea) também não são levadas muito a sério pelos cristãos.

Mas deixando a questão da fidelidade e da coerência de cada um de lado (já que é uma questão entre o indivíduo e Deus), precisamos entender o que o texto realmente quer dizer, a fim de entender a doutrina.

Entendendo o texto

A lista apostólica de Atos 15, evidentemente, não é uma lista completa para o proceder do cristão. É, antes disso, um resumo didático para cristãos gentios que já mantinham diversas práticas judaicas, como irem a sinagogas, lerem/ouvirem as Escrituras judaicas e guardarem o sábado. Eram estes que estavam sendo incomodados a ser circuncidados e talvez guardarem leis ritualísticas de distinção. A imposição criava um preconceito muito grande contra os gentios conversos e os atrapalhava até mesmo a permanecerem nas sinagogas. Esses gentios não estavam sendo considerados cristãos verdadeiros.

A compreensão apostólica para o problema foi que os gentios conversos já estavam fazendo o básico que se esperava de um crente em Cristo. Eles aceitaram Jesus como Messias, aceitaram as Escrituras judaicas como Palavra de Deus, se abstinham de seus trabalhos para irem às sinagogas aos sábados e procuravam viver uma vida justa. Como resultado dessa fé obediente e viva dos conversos, Deus estava cumprindo sua promessa de dar a eles o Espírito Santo. Ora, o Espírito não seria dado a não conversos. Então, ali estava um sinal claro de que a conversão acontecera.

Dado esse contexto, pareceu aos apóstolos que não faria sentido julgá-los como crentes falsos e não salvos apenas por não se circuncidarem e seguirem outros mandamentos puramente cerimoniais/contextuais da Torá. Isso não significava, no entanto, que a Torá deveria ser descartada. E é aqui que está o grande x da questão. Os apóstolos escolhem alguns tipos de mandamentos da Torá que iam além do mero simbolismo para deixar claro que a Torá não estava sendo revogada, mas sua essência permanecia em todos os domínios. Note: a abstenção da idolatria se referia ao domínio da relação com Deus; a abstenção da promiscuidade ao domínio da relação com o próximo; a abstenção de animais sufocados e sangue ao domínio da relação com o próprio corpo.

Aqui temos, portanto, um resumo de domínios da Torá. Isso não é incomum na Bíblia. Paulo faz isso em suas cartas resumindo toda a Torá no amor ao próximo (Rm 13:8-10 e Gl 5:14). João faz isso (I Jo 3.23). O próprio Jesus faz isso (Mt 22:36-40; Mc 12:28-34; Lc 10:25-28; Jo 13:34-35). Isso era comum entre judeus e nunca significou a abolição das demais leis, mas meramente um resumo. E resumos são feitos sempre com as partes mais importantes do todo, ou mais impactantes, ou mais representativas ou aquelas que, por alguma razão, precisam ser enfatizadas (por exemplo, quando são partes não muito conhecidas ou não muito cumpridas). As quatro leis impostas pelos apóstolos foram consideradas importantes, impactantes, representativas e necessárias o suficiente para servirem de resumo dos domínios básicos da Torá.

O resumo também sempre pressupõe a guarda de outros princípios, motivo pelo qual não é necessário citar tudo. Os apóstolos não precisavam mencionar todas as regras e princípios judaico-cristãos para os conversos gentios. Eles já conheciam e guardavam, senão tudo, a maior parte. Aquilo que não foi citado e os gentios já faziam se tratava de obviedade. Isso lembra algo importante: os textos têm contexto. Havia um problema específico relacionado à circuncisão e outros mandamentos de caráter puramente rituais da Torá. Não devemos estender o problema a qualquer parte da lei que queiramos.

A decisão do Concílio de Jerusalém não termina ali nas leis básicas deixadas pelos apóstolos. Na conclusão da reunião, o presidente do Concílio, Tiago, afirma: “Porque Moisés tem, em cada cidade, desde tempos antigos, os que o pregam nas sinagogas, onde é lido todos os sábados” (Atos 15:21).

Esse “porque” é uma explicação da decisão. Não se deveria impor a circuncisão (e outros mandamentos puramente rituais) ao gentios conversos porque a Torá já era ensinada todos os sábados nas sinagogas. Ou seja, se os gentios conversos já criam nas Escrituras Sagradas (o que inclui a Torá) e frequentavam as sinagogas aos sábados, então já seguiam a maior parte da Torá e aprendiam mais dela toda semana. Não era preciso impor rituais antigos como requisito para serem bons crentes. Eles já estavam recebendo a essência da lei.

Pela mesma razão, segundo Tiago, se deveria escrever apenas um breve resumo de leis para os gentios. Se os gentios já estavam na sinagoga em contato com o que lhes era aplicável da Torá, um resumo era mais que suficiente. Não fosse o ensino da Torá nas sinagogas habitualmente, Tiago diria o oposto: “Escrevam-lhes um compêndio detalhado, pois estão totalmente alheios à Torá e não têm onde aprender”. Não era o caso. Nesse sentido, portanto, as leis básicas colocadas pelos apóstolos são (1) o mínimo que se esperava de um converso e (2) uma representação apropriada de todos os mandamentos da Torá aplicáveis aos gentios, os quais eles podiam aprender, aos sábados, nas sinagogas que já frequentavam.

É interessante: a conclusão de Tiago pressupõe justamente a crença na Torá por toda a comunidade, a sua leitura pública, a frequência às sinagogas por judeus e gentios e, claro, a guarda do sábado.

A base da decisão apostólica

O que pode parecer estranho aqui é o apostolado ter, aparentemente, partido a lei a seu bel prazer. Com que base escriturística eles poderiam simplesmente decidir que uma das leis de Deus não precisava ser imposta aos conversos? A decisão se baseava apenas em conveniência humana? Como os apóstolos podiam se julgar autoridade para aplicar ou não a lei de Deus? E não impor a circuncisão não era uma maneira de quebrar a lei, abolir a Torá? Eis um ponto crucial para entender Atos 15.

A decisão dos apóstolos não foi arbitrária, não se baseou em mera conveniência, tampouco quebrou a lei e aboliu a Torá. Embora todos os mandamentos da Torá, os 613 (de acordo com os rabinos), fossem de Deus e, portanto, sagrados, nem todos eram aplicáveis à todas as pessoas e contextos. E os judeus sabiam disso. Por exemplo, alguns mandamentos eram só para nazireus. Outros só para sacerdotes. Alguns apenas para os reis de Israel. Havia leis aplicáveis só para homens e só para mulheres. Algumas eram específicas para quem era estrangeiro. As leis civis só eram válidas, claro, para quem vivia em Israel e num contexto de autonomia nacional e vigência da teocracia. Ou seja, era perfeitamente possível que a circuncisão não fosse aplicável, como imposição, aos gentios. Isso explica a convocação do concílio. A discussão não era se a Torá deveria ser abolida ou não, mas se a circuncisão e outros mandamentos puramente rituais da Torá eram aplicáveis aos gentios ou não.

Ora, a circuncisão fora dada a Abraão para simbolizar a aliança de Deus com o futuro povo de Israel. Era uma aliança étnica, não de salvação, já que a mesma não se dá por etnia, mas de eleição funcional. Israel foi formado por Deus para carregar suas verdades até a vinda do Messias e ser a ferramenta divina para o anúncio do evangelho ao mundo. A benção a todas as famílias, conforme a promessa em Gênesis 12:1-3 e as profecias em Isaías e Zacarias (Is 43:6, 56:1-8 e 66:19; Zc 8:20-23). Se no contexto da nova aliança, isso continua sendo requerido de Israel, não é tema do concílio.

O tema central do concílio se resumia na seguinte pergunta: sendo a circuncisão um rito que firma uma aliança étnica com Israel, talvez de duração determinada, e não relacionado à salvação, faria sentido impor isso aos gentios? Sobre isso, o apóstolo Paulo escreveria mais tarde que os gentios se tornam filhos espirituais de Abraão por meio da fé, não da circuncisão física (Rm 4:10-18 e Gl 3:29). Da mesma forma, um judeu circuncidado fisicamente precisava ter o coração circuncidado (Rm 2:25-29). Em suma, para a salvação, o que importava era a fé – uma fé verdadeira, viva, obediente. E a eleição étnica, funcional, era algo que pertencia (ou pertenceu) ao Israel étnico, não aos gentios. Assim, não fazia sentido impor isso aos gentios, muito menos vincular o rito à salvação.

Nas próprias escrituras não há uma imposição da circuncisão como requisito para o gentio se achegar ao Deus de Israel. Ao menos, não explicitamente. Em Isaías 56:1-8, os requisitos são fazer o bem e guardar o sábado. Claro, um fariseu poderia argumentar que a circuncisão poderia estar pressuposta e que o texto também fala em abraçar a aliança (vs. 6), o que poderia incluir a circuncisão. Fato. Mas a falta de um texto com imposição explícita somado ao sentido da circuncisão como símbolo para descendentes étnicos de Abraão e ainda à descida do Espírito Santo sobre os gentios acabava comprovando que o rito não deveria ser imposto aos últimos.

A teologia apostólica era mesma de Paulo: Israel é a oliveira natural e os gentios estão sendo enxertados a ela (Rm 11:17-24). Todos esses, portanto, são judeus espiritualmente. Contudo, nem todos o são etnicamente. Então, não haveria razão para impor a circuncisão aos gentios.

O Concílio de Jerusalém e a Lei/Torá

Não há, em Atos 15, qualquer discussão no sentido de abolir a Torá, mas apenas de decidir a aplicabilidade da circuncisão aos gentios e, talvez, outras leis ritualísticas menores. A tentativa de incluir na discussão o sábado e os alimentos puros e impuros vai além do que o texto realmente diz. É uma tentativa baseada em argumento do silêncio somado à uma comparação um tanto descabida entre circuncisão, sábado e distinção entre alimentos.

A circuncisão, como explicado, era um símbolo de uma aliança étnica de Deus com a nação de Israel. Representava uma eleição corporativa funcional, não a salvação. Surgira exclusivamente para isso. A salvação, tanto de judeus, como de gentios era pela graça, mediante a fé – uma fé viva, obediente, produtora de boas obras (Rm 3:9-31; Ef 2:8-10; Tg 2:14-26). Já o sábado havia sido instituído no princípio do mundo, ao fim da criação, antes de haver pecado e, obviamente, Abraão, Israel e judeus (Gn 2:1-3). Não tinha a ver exclusivamente com judeus (e Isaías 56 deixa isso bem claro).

Ademais, devemos nos ater ao contexto histórico e considerar os destinatários da carta apostólica. A maior parte dos cristãos gentios daquele período eram pessoas que já iam às sinagogas, ouviam as Escrituras e guardavam o sábado. Outros tinham conhecimento do Deus de Israel e alguns dos princípios essenciais seguidos pelos judeus. Quando, então, aceitavam a Jesus, iam para as sinagogas. Por isso Paulo pregava nelas (At 18:1-4). Não era, portanto, o sábado que estava servindo de muro entre judeus legalistas e gentios. O sábado já era guardado. Não havia razão para entrar na discussão (e, de fato, não é citado no texto). O que servia de muro era, evidentemente, algo ao qual os gentios não haviam se submetido: a circuncisão.

A distinção entre alimentos puros e impuros, por sua vez, surgira à época do dilúvio, quando o consumo de carne foi liberado por Deus (Gn 7:2-9), ou seja, também muito antes de Abraão, Israel e judeus. Da mesma forma, as quatro leis básicas citadas como exemplo pelos apóstolos também estavam todas fincadas em princípios anteriores Abraão, Israel e judeus (como em Gn 9:4). Isso estabelece enorme distinção entre circuncisão, sábado e alimentos puros e impuros. As duas últimas leis não eram só para judeus. Eram leis gerais.

A Bíblia não dá detalhes, mas além da circuncisão, possivelmente fariseus tentavam impor mandamentos como o de não cortar o cabelo em redondo, nem danificar a barba (Lv 19:27), não usar lã e linho juntamente (Dt 22:11), andar com borlas nos quatro cantos do manto que nos cobrir (Dt 22:12), não cozinhar carne de cabrito no leite da própria mãe (Êx 23:19; 34:26; Dt 14:21), não tomar para si o passarinho-mãe quando achar um ninho com ela e os filhotes (Dt 22:6-7), etc. Esses mandamentos não foram dados antes da Torá, com um intuito geral, sendo incorporados depois na lei. Eram mandamentos mosaicos para o povo étnico de Israel, os quais visavam o afastamento de atividades que poderiam se confundir com rituais pagãos, ensinos éticos na forma de parábolas práticas e a distinção aparente entre o povo étnico de Yahweh e os demais.

Muito possivelmente também os fariseus impunham tradições que não eram bíblicas, referentes ao modo de guardar os mandamentos. Era comum os líderes da época tratarem aquilo o que estava escrito na Torá em pé de igualdade com as interpretações e tradições rabínicas. Daí os costumes de lavar as mãos ritualisticamente (Mt 15:1-11 e Mc 7:1-13), não entrar em casas de gentios (At 10:27-29), não comer com gentios (Gl 2:11-21), não efetuar curas aos sábado (Mt 12:9-14), não colher frutos para comer em dia de sábado (Mt 12:1-8), etc. Tudo isso era tratado, pelos líderes fariseus como parte do judaísmo. A esse judaísmo, distorcido, legalista, repleto de tradições de homens, Paulo rechaçava (Gl 1:13-14).

É pouco provável que já nesse concílio a liderança da Igreja ali reunida já tivesse maturidade também para entender as festas e sacrifícios como antítipos de Jesus. Mas as conclusões da reunião certamente abriam as portas para esse descobrimento. E, talvez, dentre as imposições farisaicas estivessem também as peregrinações dos gentios que moravam fora de Israel à cidade de Jerusalém para as festas judaicas. Tudo isso, porém, se estava incluso nas ordens farisaicas, era secundário. A tônica das imposições dos fariseus legalistas era a circuncisão. Tanto que o Novo Testamento fala sobre isso em 14 ocasiões diferentes (At 15, 16:3 e 21:21; Rm 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Co 7:18-19; Gl 2:12, 5:2-11 e 6:12-15; Fl 3:2-5; Cl 2:11-13, 3:11; Tt 1:10), mostrando que esse era o maior dos problemas que criava discórdia à época – de forma alguma o sábado ou a distinção de alimentos puros e impuros.

Portanto, usar o texto de Atos 15 para deslegitimar a guarda do sábado e a distinção entre alimentos puros e impuros é descontextualizar a narrativa. O que o Concílio de Jerusalém nos ensina é que (1) a Lei continua válida, com suas aplicações devidas a cada grupo e tempo; e que (2) há uma distinção entre ritos exclusivos para um grupo e/ou período e mandamentos gerais. A circuncisão fora dada aos judeus. O sábado e a distinção entre alimentos puros e impuros, assim como não assassinar, não furtar, não adulterar, não idolatrar, honrar pai e mãe, não usar o nome de Deus em vão, não se embriagar, etc. são gerais – vão além dos judeus.