Por Davi Caldas

O judaísmo rabínico (que é o majoritário desde o segundo século) faz uma curiosa distinção entre Torá Escrita (Torá Shebiktav) e a Torá Oral (Torá Shebeal pê). A primeira são os cinco primeiro livros da Bíblia, escritos por Moisés, que muitos cristãos conhecem pelo nome de Pentateuco. A segunda, no entanto, é todo o conjunto de explicações, interpretações e ensinamentos de rabinos antigos. Segundo o entendimento de muitos rabinos, essa tradição oral foi dada por Deus ao próprio Moisés, no Sinai, juntamente com a Torá Escrita. Moisés, por sua vez, a repassou a Josué, que repassou aos anciãos de sua época e assim sucessivamente de geração em geração.

Acredita-se que o ensino das duas Torá foi formalizado pelo rabino Akiva ben Yosef (40 d.C. – 135 d-C.). Akiva foi o responsável por iniciar um trabalho de registro escrito de toda a coleção de tradições rabínicas centenárias, trabalho continuado pelo rabino Meir Baal HaNes e seu discípulo Yehudá HaNassi. Esse trabalho de codificação da Torá Oral ficaria conhecido como Mishná. A Mishná é uma parte do Talmude, que registra tanto a Torá Oral, quanto discussões rabínicas a respeito da Torá Oral (essa parte das discussões é chamada de Guemará). Grande parte do que Akiva entendeu como Torá Oral também é composta pelo que os  judeus chamam de Halaká, que significa “maneira de andar” ou “comportamento”.

Antes mesmo de essas tradições serem codificadas por escrito, elas já eram vistas com alto grau de importância por escribas e fariseus do primeiro século e até antes. As tradições a respeito da Torá ganharam muita força e importância no período intertestamentário, em virtude da convicção rabínica de que Deus havia punido Israel pelas transgressões à Torá. O modo de lidar com isso era produzindo regras adicionais (extrabíblicas) que dificultassem a transgressão da Lei. Ademais, uma vez que em alguns pontos a Torá não detalhava muito algumas questões, os rabinos buscavam tampar esses “buracos” com interpretações e deduções bem detalhadas.

A influência dos rabinos fariseus transformou grande parte dessas regras adicionais, interpretações e deduções detalhadas em leis judaicas. Eram parte integrante da religião e tinham quase o mesmo peso que a Torá Escrita. Para eles, ser judeu (do ponto de vista religioso) era seguir não só a Torá Escrita, mas todo um conjunto de leis judaicas, isto é, de tradições orais rabínicas centenárias a respeito da Torá. Obviamente, a antiguidade dessas tradições e o fato de terem se originado e conservado através da classe douta da sociedade, eram fortes argumentos para que as mesmas fossem vistas como verdadeiras.

Ressalta-se que não existiam apenas tradições dos fariseus e saduceus na sociedade judaica. As diversas facções tinham seus costumes, interpretações e regras próprias também. Essas ideias podiam circular entre o povo de modo mais ou menos misturado e sem uma unanimidade geral. Contudo, algumas tradições eram mais conhecidas e possuíam maior peso para a sociedade no geral do que outras, aproximando-se mais do status de Lei. Neste aspecto, o ensino farisaico era o mais influente e seguido.

É neste contexto de tradição sendo vista como extensão da Lei que Jesus Cristo, bem como seus discípulos e primeiros seguidores, cumprem seus ministérios na terra. Reconhecer esse contexto é extremamente relevante para o estudo do Novo Testamento. O fato nos ajuda a compreender como que muitas vezes a concepção de Torá e de judaísmo que os rabinos possuíam (sobretudo os da classe farisaica) envolvia mais do que apenas a Lei Escrita. Incluía um abouço de interpretações, discussões, deduções e tradições orais extra bíblicas da liderança israelita.

Quando levamos esse contexto em conta nos nossos estudos, percebemos, por exemplo, que as críticas de Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, nunca foram contra aqueles que seguiam a Lei Escrita ou o judaísmo estritamente bíblico, mas contra as tradições orais que contradiziam as Escrituras, os acréscimos humanos, as interpretações legalistas, as análises superficiais da Torá. O mesmo se deve concluir sobre Jesus. Suas discussões exaltavam a Lei, não a rebaixavam. Em contraponto, a tradição era rebatida e rechaçada quando feria as Escrituras ou não fazia jus à sua essência. Vejamos algumas ocasiões relatadas na Bíblia que demonstram o que temos dito.

A tradição da lavagem de mãos

“Então, vieram de Jerusalém a Jesus alguns fariseus e escribas e perguntaram: ‘Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos, quando comem’. Ele, porém, lhes respondeu: ‘Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição? Porque Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Mas vós dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Senhor aquilo que poderias aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E, assim, invalidastes a palavra de Deus, por causa da vossa tradição’” (Mt 15:1-6).

Essa mesma história é narrada no evangelho de Marcos, o qual oferece uma explicação adicional:

“[…] pois os fariseus e todos os judeus, observando a tradição dos anciãos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos; quando voltam da praça, não comem sem se aspergirem; e há muitas outras coisas que receberam para observar, como a lavagem de copos, jarros e vasos de metal” (Mc 7:3-4).

A chamada tradição dos anciãos nada mais era que uma Torá Oral com hábitos, costumes, discussões e regras haláquicas. Duas práticas da tradição são citadas. A primeira diz respeito à purificação antes de comer. Não se tratava de uma preocupação higiênica, mas ritualística. Os rabinos acreditavam que as mãos por lavar tornavam os alimentos impuros, no sentido espiritual. E, por consequência, comer esses alimentos era se tornar espiritualmente impuro. Provavelmente, o ritual havia surgido para evitar que alguém entrasse em contato com algo impuro na rua sem perceber e contaminasse os alimentos que entrasse em contato e a si mesma.

Sabemos hoje que, do ponto de vista da prevenção de doenças, é importante lavar as mãos antes de comer. Sobretudo quando chegamos da rua. Contudo, ninguém se torna imoral ou espiritualmente inaceitável por não lavar as mãos. Ademais, não se tratava de um mandamento de Deus. Era apenas uma tradição seguida, estimulada e entendida como uma extensão da Lei pelos fariseus. Ou seja, ainda que hoje possamos enxergar o valor higiênico da regra, a sua motivação da época (meramente ritualística), sua elevação ao status de Lei e seu uso por alguns mestres como forma de julgamento moral eram reprováveis diante de Deus. Isso leva Jesus a apontar a ilogicidade da motivação farisaica: comer sem lavar as mãos não faz ninguém se tornar impuro moralmente. A imoralidade é o que vem de dentro, não o que vem de fora.

A segunda prática mencionada no texto é destacada pelo próprio Jesus em sua resposta aos mestres inquiridores. Muitas vezes deixava-se de ajudar os pais financeiramente crendo-se que a prioridade era o templo. Cristo entendeu aquilo como uma forma de desonrar os pais (e, talvez, uma desculpa usada por alguns rabinos inescrupulosos para angariar mais fundos das pessoas). A conclusão foi taxativa: a tradição humana estava, neste caso, invalidando um mandamento de Deus, o que era reprovável. Jesus, portanto, exalta a Lei e critica as tradições antibíblicas nesses dois relatos.

Aqui começamos a ter um vislumbre de como a tradição era vista como se fosse parte da Lei e do judaísmo. E como isso partia de rabinos, o povo simplesmente abaixava a cabeça e cumpria.

Curas aos sábados

 “Tendo Jesus partido dali, entrou na sinagoga deles. Achava-se ali um homem que tinha uma das mãos ressequida; e eles, então, com o intuito de acusá-lo, perguntaram a Jesus: ‘É lícito curar no sábado?’ Ao que lhes respondeu: ‘Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha? Logo, é lícito, nos sábados, fazer o bem’. Então, disse ao homem: ‘Estende a mão’. Estendeu-a, e ela ficou sã como a outra. Retirando-se, porém, os fariseus, conspiravam contra ele, sobre como lhe tirariam a vida” (Mt 12:9-14).

Marcos e Lucas também narram essa ocasião (Mc 3:1-6 e Lc 6:6-11) e acrescentam que Jesus questionou: “Que vos parece? É lícito, no sábado, fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou deixá-la perecer?”. Em outro evento semelhante, narrado por Lucas, o próprio Jesus instiga os mestres: “É licito ou não curar no sábado?” (Lc 14:3). E como ninguém responde, Cristo lança outro questionamento: “Qual de vós, se o filho ou o boi cair num poço, não o tirará logo, mesmo em dia de sábado?” (Lc 14:5).

Em Lucas 13:10-17 há outro evento interessante envolvendo curas no sábado. Jesus está ensinando em uma sinagoga, num sábado. Ao ver uma mulher enferma havia dezoito anos, que andava encurvada por conta da doença, opera sua cura. Indignado, o chefe da sinagoga reclama com a população:

“Seis dias há em que se deve trabalhar; vinde, pois, nesses dias para serdes curados e não no sábado. Disse-lhe, porém, o Senhor: ‘Hipócritas, cada um de vós não desprende da manjedoura, no sábado, o seu boi ou o seu jumento, para levá-lo a beber? Por que motivo não se devia livrar deste cativeiro, em dia de sábado, esta filha de Abraão, a quem Satanás trazia presa há dezoito anos?’”.

Em João 9:1-16, Jesus cura um cego de nascença em um sábado. O cego curado, ao aparecer para os conhecidos enxergando, é levado aos fariseus. Diz o relato:

“Então, os fariseus, por sua vez, lhe perguntaram como chegara a ver; ao que lhes respondeu: ‘Aplicou lodo aos meus olhos, lavei-me e estou vendo’. Por isso, alguns dos fariseus diziam: ‘Esse homem [Jesus] não é de Deus, porque não guarda o sábado’. Diziam outros: ‘Como pode um homem pecador fazer tamanhos sinais?’ E houve dissensão entre eles”.

Há vários pontos importantes nessas narrativas. Em primeiro lugar, Jesus em nenhum momento questiona o sábado. Ao contrário, ele comprova que curar no sábado é lícito, ou seja, está de acordo com a Lei. Jesus estava defendendo a Lei, não a atacando, como muitos supõem. Isso implica que as acusações farisaicas não estavam baseadas na Lei, mas na tradição interpretativa deles. Era a isso que Jesus se opunha e não à Lei.

Em segundo lugar, Jesus inteligentemente enreda os fariseus com ideias que os próprios rabinos defendiam. Ele se utiliza de duas em especial: (1) a ideia de que a Torá tem como essência a preservação da vida humana (conceito chamado de pikuach nefesh) e (2) a de que se podemos fazer um bem e não fazemos, isso é a mesma coisa que fazer um mal. Por essa razão, os rabinos aceitavam como legítimo que se salvasse a vida de um animal ou ser humano em um sábado.

O que Jesus faz é levar esse pensamento rabínico (que é bíblico, diga-se) a um nível mais profundo: por que não curar um doente? Jesus não só tinha poder para fazer isso (e de forma rápida, sem qualquer grande esforço), como o ato estava de acordo com o princípio de preservação da vida. Ele estava promovendo o bem estar. Não curar seria, portanto, fazer o mal. E, consequentemente, quebrar o sábado.

Em terceiro lugar, não havia nada nas Escrituras que proibisse a cura de pessoas no sábado. E pelos princípios de amor ao próximo que se poderiam extrair da Torá, os fariseus tinham total condição de deduzir que Jesus estava fazendo algo licito. Contudo, uma interpretação mais superficial foi a escolha: curar era um tipo de trabalho. Logo, uma transgressão ao Shabbath. Assim, quando os fariseus afirmam que Jesus quebrava o sábado, essa não era a visão real dos fatos, mas a visão deles – visão na qual a tradição era elevada ao patamar da Lei.

Colher espigas para comer aos sábados

 “Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: ‘Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado’. Mas Jesus lhes disse: ‘Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes. Porque o Filho do Homem é senhor do sábado’” (Mt 12:1-8).

Essa ocasião também é relatada em Marcos 2:23-28 e Lucas 6:1-5. Marcos inclui as seguintes palavras de Jesus: “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2:27).

Nesses textos, tiramos lições semelhantes às que vimos na análise anterior. Os fariseus acusam os discípulos de Jesus de fazer algo ilícito (isto é, contra a Lei). Jesus começa a responder recorrendo a um exemplo das Escrituras em que o sacerdote Abiatar deu a Davi e seus companheiros pães sagrados do templo. Em ocasiões normais, esses pães não deveriam ser comidos por ninguém, senão sacerdotes. Mas pelo princípio já citado da preservação da vida humana (pikuach nefesh), o uso dos pães para alimentar Davi e seus militares se tornava prioridade e a coisa correta a se fazer.

Uma máxima judaica que advém do princípio da preservação da vida é a “transgredir e não morrer” (ya’avor v’al ye’hareg). Segundo esta, qualquer mandamento pode ser transgredido (à exceção dos relacionados à idolatria, relações sexuais ilícitas e assassinato) se for para salvar uma vida. Isso porque, no fim das contas, se a essência da Lei é a preservação da vida, quando o mandamento o faz, não está cumpre a razão de sua existência. Assim, do ponto de vista judaico, tornou-se aceitável Davi e seus militares comerem os pães sagrados dos sacerdotes, assim como tornou-se aceitável (ou tolerável) Raabe mentir para salvar a vida dos espias de Israel (Js 2:1-6) e as parteiras hebreias mentirem para salvar a vida dos bebês hebreus (Êx 1:15-21).

Jesus, no entanto, vai mais além e se utiliza de uma ironia. Afirma que os sacerdotes no templo violam o sábado, pois trabalham nele. Obviamente, a atividade dos sacerdotes não poderia se enquadrar no conceito de “trabalho”, pois estava relacionado à adoração a Deus e serviço ao próximo. Não apenas são atividades permitidas e próprias do sábado como são necessidades. Ou seja, Jesus está levando à reflexão: se o conceito de trabalho dos fariseus está correto, até os sacerdotes transgridem o sábado. Como isto seria um absurdo, pois faria da Lei algo contraditório, segue-se que o conceito farisaico não está correto.

Ele continua dizendo que é maior que o templo. Ou seja, se o serviço do templo é algo permitido no sábado porque é uma necessidade e suas atividades são apropriadas para o dia, muito mais as atividades feitas por Cristo ou sob a anuência de Cristo, o qual é maior que o templo. Em seguida, ele afirma que a misericórdia é mais importante que os holocaustos (com base em palavras do próprio Antigo Testamento). Isso parece ser uma referência à postura farisaica de preferir à superfície da Lei em vez da essência. Por isso, condenavam inocentes. Em outras palavras, Jesus não reconhecia que seus discípulos estavam cometendo uma ilicitude. Eles estavam apenas matando a fome.

O acréscimo de Marcos é interessante. Jesus volta a chamar a atenção para o principio da preservação da vida humana ao dizer que o sábado foi criado para o homem. Ou seja, se o sábado não servisse para preservar a vida humana, para gerar bem estar no homem, então sua essência era corrompida. A conclusão da série de argumentos é que Jesus sabia o que estava fazendo, pois é Senhor do Sábado. Como Criador do Sábado, Ele sabia bem o que era legal e o que não era.

Note que toda a argumentação de Jesus se dá dentro dos pressupostos judaicos e sempre apelando tanto às Escrituras Sagradas, como ao pensamento lógico. Note também que as acusações farisaicas se baseavam meramente em tradição. Nada havia nas Escrituras que proibisse alguém com fome de pegar algo para comer em dia de sábado. Tratava-se de uma grande distorção do conceito de “trabalho”. No entanto, apesar de tradição, era visto como Lei pelos fariseus.

Carregar o leito aos sábados

 “Então, lhe disse Jesus: ‘Levanta-te, toma o teu leito e anda’. Imediatamente, o homem se viu curado e, tomando o leito, pôs-se a andar. E aquele dia era sábado. Por isso, disseram os judeus ao que fora curado: ‘Hoje é sábado, e não te é lícito carregar o leito’” (Jo 5:8-10).

Para os fariseus, carregar o leito em um dia de sábado se configurava uma transgressão ao mandamento. Possivelmente, a base escriturística para essa compreensão estava em Jeremias 17:21-22, onde Deus insta que o povo não carregasse cargas no sábado. Mas o contexto claramente se refere não ao carregamento de objetos em si, mas à compra e venda de cargas. O povo estava usando o sábado para fazer comércio interno e externo, cuidando dos próprios interesses materiais como em qualquer outro dia. É o mesmo problema tratado em Neemias 13:15-22. Ora, esse não era o caso do paralítico curado. Jesus não ordenou ao homem vender sua cama ou fazer alguma compra. Apenas o despachou para casa e disse para levar a sua cama de volta. Carregar de volta a sua cama era o mesmo que carregar as roupas que vestia. Não havia intenção comercial ali. A interpretação farisaica, portanto, mais uma vez não era Lei, mas tradição. Era a visão da superfície da Lei, não da essência.

Um pouco mais adiante, o texto de João afirma:

“E os [mestres] judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas ele lhes disse: ‘Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também’. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (Jo 5:16-18).

Muitos usam esse texto para dizer que Jesus transgredia o sábado. Mas o que Jesus faz aqui é mais uma vez ironizar o conceito farisaico de trabalho. Se as curas e o bem que Jesus fazia eram um trabalho, então o próprio Pai trabalha aos sábados, Afinal, Ele não cessa de fazer o bem, manter o homem, protegê-lo de doenças, curá-lo. E se o Pai fazia isso, Jesus seguiria o seu exemplo. É claramente uma ironia. O tipo de trabalho que Jesus fazia aos sábados não só era lícito como todos deveriam desempenhar.

Em João 7:21-24, Jesus oferece mais uma lição contra as interpretações superficiais da tradição farisaica:

“Replicou-lhes Jesus: ‘Um só feito realizei, e todos vos admirais. Pelo motivo de que Moisés vos deu a circuncisão (se bem que ela não vem dele, mas dos patriarcas), no sábado circuncidais um homem. E, se o homem pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja violada, por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça’”.

Julgar pela aparência é analisar a Lei em sua superfície. Julgar segundo a reta justiça é analisar a Lei em sua a essência. A interpretação farisaica do caso estava baseada em uma visão rasa da Lei, num apego à letra, não ao espírito da Escritura. Isso os impedia de enxergar coisas básicas. Jesus exemplifica: a circuncisão era preceito divino, ordenança da Lei. Por isso, podia ser feita no sábado. Da mesma maneira, curar um homem e fazer o bem são preceitos divinos, ordenanças da Lei. Assim, podem e devem ser feitos no sábado. Aqui os conceitos de fazer o bem sempre que puder e preservar a vida humana estão sendo mais uma vez evocados. E isso não quebra a Torá, mas flui dela.

O preceito do “olho por olho”

“Ouvistes que foi dito: ‘Olho por olho, dente por dente’. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes” (Mt 5:38-42).

Esse é um trecho do Sermão do Monte. No Sermão, Jesus faz menção, por seis vezes, a ensinos que eram correntes entre o povo da época. Aparentemente, todos eles eram atribuídos “aos antigos” (v. 21), o que indica o poder da tradição na sociedade judaica do primeiro século. É fato que todos os ensinos citados por Jesus no Sermão têm como base preceitos da Escritura. Entretanto, alguns eram distorcidos e outros não captavam a essência dos mandamentos aos quais se referiam. Assim, o “eu, porém” de Jesus ao fim de cada exemplo proferido não era uma oposição à Torá, mas à interpretação rasa ou distorcida que muitas vezes se fazia dela.

No caso do trecho supracitado, percebe-se que o preceito jurídico “olho por olho, dente por dente” estava sendo ensinado como um incentivo ao rancor e à vingança no nível pessoal. É uma clara distorção. A norma existia para ser aplicada por juízes a pessoas que cometeram crimes, como lesões a uma mulher grávida e seu bebê (Ex 21:22-25; Lv 24:19-20). Ocorria apenas após julgamento formal, com pelo menos duas testemunhas e direito de defesa (Dt 19:15-21). No entanto, muitas pessoas estavam usando a frase para justificar retaliações e ódio a desafetos.

O problema possivelmente partia de uma parte considerável dos rabinos da época de Jesus. Um dos indícios é que antes de começar a citar as interpretações distorcidas ou rasas, ele afirma que seus ouvintes jamais entrariam no reino dos céus se sua justiça não excedesse “em muito a dos escribas e fariseus” (v. 20). Não necessariamente se tratava de uma tradição antiga. Talvez fosse uma distorção razoavelmente nova, de uma ou duas gerações.

Provavelmente, o ensino distorcido era usado em conversa a respeito de romanos e publicanos, gente pouco estimada. Recorrendo a trechos isolados da Escritura é fácil desumanizar algumas classes de pecadores, justificando atitudes ruins em relação aos mesmos. Por isso, Jesus lança mão de imagens impactantes m sua fala, deixando claro que a vingança não era algo correto. Nisso também Jesus exaltou a Lei, pois a Torá insta contra a vingança, ensinando o amor ao próximo (Lv 19:18, Êx 23:4-5). E mesmo os estrangeiros na terra de Israel são incluídos no preceito, devendo ser igualmente amados pelos israelitas (Dt 10:19 e Lv 19:33-34). Ora, exaltando o ensino da Torá, Cristo acaba por exaltar também o ensino dos profetas, uma vez que os profetas refletem o que a Lei diz sobre vingança e amor ao próximo (Pv 25:21-22; Is 58:3-4). Assim, temos mais um caso aqui de Lei de Deus x tradição de homens; de Escritura x distorção oral.

O preceito do “ódio ao inimigo”

 “Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5:43-48).

Esse trecho deixa mais claro que o anterior que a oposição de Jesus não é à Lei, mas às interpretações distorcidas ou rasas feitas dela. Neste caso, o mandamento de amar ao próximo, que está em Levítico 19:18, foi acrescido da assertiva “e odiarás o teu inimigo”. Tratava-se de uma máxima dos essênios (e que provavelmente estava contaminando boa parte do povo). Como na tradição distorcida em relação ao “olho por olho, dente por dente”, essa distorção provavelmente era usada em conversações sobre romanos, publicanos e pagãos em geral. Estes eram tidos inimigos pelos judeus. Odiá-los era bem conveniente.

Justificar esse ódio com uma leitura rasa das Escrituras é simples. A aversão à idolatria dos pagãos, à desonestidade dos publicanos e à opressão dos romanos sobre os judeus logo se transforma em aversão pelo pagão, pelos publicanos e pelos romanos. O pecador toma o lugar do pecado. Isso explica, por exemplo, o desejo de Tiago e João desejarem que fogo caísse do céu e consumisse os samaritanos que não aceitaram Jesus em um momento de seu ministério (Lc 9:51-56). Explica também a relutância do profeta Jonas em pregar aos pecadores de Nínive (Jn 1:1-3) e seu descontentamento por Deus tê-los perdoado depois da pregação (Jn 3:3-10 e 4:1-5). Jesus, contudo, mais uma vez resgata a essência da Torá das interpretações antibíblicas correntes.

O preceito do divórcio

 “Também foi dito: ‘Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio’. Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério” (Mt 5:31-32).

Havia uma discussão rabínica já antiga na época de Jesus sobre em quais circunstâncias era permitido o divórcio. Alguns rabinos acreditavam que a Torá permitia divórcio por qualquer razão. Outros defendiam que era só em caso de adultério. O fato de Jesus citar a ideia do repúdio como ensino corrente em sua época sugere que parte considerável dos rabinos cria que o divórcio poderia se dar por qualquer razão.

Em Mateus 19:3-9 e Marcos 10:2-9, lemos que alguns fariseus que queriam testar Jesus, o questionam a esse respeito. A disposição do grupo em evocar Moisés (que permitiu a carta de divórcio) para contradizer Jesus – colocando Jesus como contrário não a uma interpretação, mas à Lei em si – salienta a possibilidade de interpretações errôneas se tornarem tradição consolidada, ganhando assim status de Lei. Assim, nem sempre o que os rabinos entendiam como Lei ou o que os judeus diziam ser Lei era realmente o que a Torá dizia. Por vezes eram apenas tradições e interpretações rabínicas.

Comer com (e entrar na casa de) pecadores e gentios

“Passadas estas coisas, saindo, [Jesus] viu um publicano, chamado Levi, assentado na coletoria, e disse-lhe: ‘Segue-me!’. Ele se levantou e, deixando tudo, o seguiu. Então, lhe ofereceu Levi um grande banquete em sua casa; e numerosos publicanos e outros estavam com eles à mesa. Os fariseus e seus escribas murmuravam contra os discípulos de Jesus, perguntando: ‘Por que comeis e bebeis com os publicanos e pecadores?’. Respondeu-lhes Jesus: ‘Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento’” (Lc 5:27-32).

Essa mesma história está narrada também em Mateus 9:9-13 e Marcos 2:13-17. Ela nos revela que para os rabinos da época de Jesus, sentar-se para comer com determinados tipos de pecadores era reprovável. Entendemos melhor o panorama quando lemos outras histórias. Em Lucas 7, por exemplo, os amigos judeus de um centurião romano pedem a Jesus que vá à sua casa curar um servo querido. Argumentam os enviados do centurião que o mesmo é digno “porque é amigo do nosso povo, e ele mesmo nos edificou a sinagoga” (v. 5). Jesus se dispõe a ir até a casa do militar. Mas no caminho, o centurião envia outros amigos para dizer:

“Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa. Por isso, eu mesmo não me julguei digno de ir ter contigo; porém manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado” (vs. 6-7).

Note: o próprio centurião, porquanto fosse temente a Yahweh e amigo de judeus, não se sentia digno de que Jesus entrasse em sua casa. Muito provavelmente porque ele não era judeu e sabia que os judeus evitavam entrar na casa de gentios. A tradição judaica de não entrar na casa de gentios tinha quase um status de Lei. Em Atos 10, quando Pedro é convidado pelo centurião Cornélio (também temente a Yahweh) a ir até sua casa, ele vai e afirma ao militar:

“Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça; mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo; por isso, uma vez chamado, vim sem vacilar” (vs. 28-29).

A proibição judaica da qual Pedro fala não se encontra nas Escrituras. Era uma tradição, um costume. Assim como não entrar na casa de certos tipos de judeus, tais como os publicanos, que eram tidos como ladrões e traidores do povo. O contato com pessoas oriundas de grupos de má fama ou que não eram judias deveria ser o mínimo possível, a fim de que os judeus não fossem “contaminados”, conforme o pensamento rabínico corrente.

Voltando à Lucas 7, também lemos nesse capítulo sobre a mulher que ungiu os pés de Jesus com perfume e enxugou com os próprios cabelos. O evento ocorreu numa refeição oferecida por um fariseu de nome Simão. O fariseu, ao ver a cena, disse consigo mesmo: “Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, porque é pecadora” (v. 39). Já em João 4, há a história da mulher samaritana, a quem Jesus pede água num poço. Ela, surpresa com o pedido, lança a pergunta: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana (porque os judeus não se dão com os samaritanos)?” (v. 9). Seus discípulos, que haviam deixado Jesus junto ao poço enquanto iam comprar mantimentos na cidade, veem Jesus conversando com a mulher quando retornam e estranham o fato. Jesus conversando com uma mulher, desconhecida e ainda samaritana? Mas ninguém ousa perguntar nada (v. 27).

Os samaritanos também faziam parte dos grupos evitados por judeus. Dentre as razões para a rixa, havia o fato de que Samaria não era uma terra de israelitas puros, nem etnica, nem religiosamente. No reinado do rei judeu Oséias, o rei da Assíria, Salmaneser, sitiou e dominou Samaria, região judaica. Então, expulsou grande parte dos israelitas de lá e levou gente de outras nações para habitar suas cidades. Como eram todos idólatras, Deus enviou uma praga de leões à Samaria. Conselheiros disseram a Salmaneser que o problema era que o Deus daquela terra não estava sendo servido. Então, o rei enviou um sacerdote judeu para ensinar sobre Yahweh. Os habitantes, então, passaram a servir a Yahweh também, mas sem deixar os seus deuses.

Os pagãos de Samaria se casaram com os israelitas remanescentes na terra, formando um povo misto. Com o tempo, os ídolos foram deixados, mas o povo optou por adorar no monte Gerizim, em vez de Jerusalém. Por essa causa, seus habitantes contrariaram a reconstrução dos muros de Jerusalém por Neemias (Ne 2:19 e 4:2). Herdeiros da parte Norte do reino dividido de Israel, desprezavam tudo o que vinha do Sul (reino de Judá), incluindo profetas. Assim, judeus não os consideravam parte de seu povo e religião.

Havia dois fundamentos para essa visão separatista dos judeus da época de Jesus: um moral e um ritual. Quanto à moral, as Escrituras ordenavam cuidados em relação aos povos não judeus. O salmista diz: “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1:1). O líder Josué exorta o povo a não se apegar às nações pagãs vizinhas, nem fazer menção de seus deuses, nem contrair matrimônios com seus habitantes (Js 23:6-13). Uma vez que os rabinos judeus desenvolveram grande medo de que o povo se desviasse novamente como nas gerações passadas (caindo em idolatria e outros pecados graves), o mínimo de contato possível com gentios no geral, romanos, publicanos, samaritanos e pecadores (pessoas de má reputação) era a norma.

Quanto ao ritual, entendia-se que comer com esses grupos ou entrar na casa deles era se expor à impureza. Eram pessoas que não cumpriam toda a Lei. No caso dos gentios, isso era mais pungente. Comer com eles era entrar em uma casa impura, sentar-se a uma mesa impura e comer alimentos feitos por pessoas impuras. Por mais que o gentio em questão servisse alimentos permitidos pela Torá, ele era, no conceito judaico da época, impuro ritualmente: incircunciso, não participante da Páscoa (preceito permitido apenas aos circuncisos) e oriundo de povo pagão. Para os rabinos fariseus, comer na casa de um gentio seria tornar nulo o ritual da lavagem das mãos, aliás. De que adiantaria lavar as mãos, estando na casa e na mesa de um gentio?

A tradição de não entrar na casa de pecadores e gentios (sobretudo gentios), nem comer com eles era tão forte que até Pedro e outros seguidores de Cristo sentiram dificuldade de enfrentar os irmãos judeus que seguiam o costume. Em Gálatas 2, Paulo conta:

“Quando, porém, Cefas [Pedro] veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tornara repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: ‘Se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus?’” (Gl 2:11-14).

Esse trecho é interpretado por muitos cristãos como uma oposição de Paulo à Lei e ao judaísmo. Mas o problema, como nas demais passagens expostas, era a tradição. A Torá e os Profetas não proíbem o contato mais próximo com gentios, nem promovem o ódio contra eles ou uma visão de serem menos amados que os judeus. Ao contrário disso, eles afirmam repetidamente que “Deus não faz acepção de pessoas” (Dt 10:17 e 16:19; II Cr 19:7; Jó 13:8-10, 32:21 e 34:19; Ml 2:9), base bíblica usada pelo próprio Pedro no evento da pregação a Cornélio (At 10:34).

Como já dito também, a Torá zela pelo bom tratamento aos estrangeiros (Êx 23:9; Lv 19:33-34; Dt 10:19, 24:14 e 31:12; Js 8:35, Sl 146:9, etc.). Pela pena de Isaías, Yahweh encoraja os gentios a se unirem ao povo de Israel (Is 56:1-8). Por toda a Tanach, Deus afirma que sua Palavra alcançaria todos os povos (Is 19:23-25, 56:6-8, 66:18-19; Zc 8:20-23, etc.). Também na Tanach, lemos exemplos de profetas pregando entre gentios e pagãos sendo convertidos ao Deus de Israel (Rt 1:15-18; Js 2:9-13; II Reis 5:15-17; Jn 3:1-10; Dn 4:34-37, 6:25-27). A formação de Israel, aliás, estava intimamente ligada à missão de abençoar todas as famílias da terra (Gn 12:1-3). A Torá, portanto, abraçava os gentios. E os profetas confirmavam esse preceito da Torá.

O que a Tanach proibia não era comer com gentios (e pessoas de má reputação) e entrar na casa deles, mas tomar parte em seus pecados. Práticas como sentar-se para rir com quem escarnece de Deus, seus mandamentos e seu povo; participar de cultos e festas idolátricas com amigos gentios; casar-se com gentios idólatras (o que implica levar forte influência idolátrica para dentro de casa); imitar os pecados das pessoas à volta; andar de modo rotineiro com quem comete perversidade. Mas isso, de forma alguma, implica deixar de lado gentios e perversos arrependidos e/ou interessados em saber mais sobre o Deus de Israel. Os judeus deveriam cuidar para não serem mal influenciados. Porém, era sua obrigação serem boa influência.

Isso não significa, claro, que Jesus e seus seguidores frequentavam lugares onde reinava a depravação para pregarem o evangelho. Cristãos liberais modernos às vezes usam esse expediente como desculpa para estarem em locais impróprios. Cristo não frequentava locais impróprios. Ele pregava em locais públicos, áreas abertas e sinagogas. Os que eram alcançados por sua pregação, por vezes o convidavam para uma ceia ou festa, na intenção de ouvirem mais. Eram pessoas sinceras que desejavam consertar suas vidas espirituais, como Zaqueu e Levi Mateus (Lc 19:1-9 e 5:27-32). Nessas ocasiões, Jesus operava salvação. E foi isso o que ele deixou de ensino para os discípulos.

A postura de Jesus, portanto, era condizente com a Lei. Por conseguinte, Paulo estava de acordo com a essência dos mandamentos da Torá, dos Profetas e do Messias; e em oposição à tradição judaica da época. Aqui mais uma vez fica patente que nem tudo o que se entendia por Lei era a Torá Escrita. Às vezes, eram tradições, era todo o corpo de costumes e regras haláquicas judaicas, era a Torá Oral. E uma vez que ser judeu, para os rabinos, era seguir todo o corpo de regras judaicas, tanto a escrita quanto a oral, então a visão de “viver como judeu” e de “judaísmo” da época era bastante distorcida. Sobre isso, falaremos mais profundamente no próximo tópico.

Judaísmo, judeus e a “tradição de meus pais”

“[…] ouvistes qual foi o meu proceder outrora no judaísmo, como sobremaneira perseguia eu a igreja de Deus e a devastava. E, na minha nação, quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais” (Gl 1:13-14 – grifos meus).

Muitos cristãos creem que, nesse trecho, Paulo está se opondo ao judaísmo e dizendo não mais fazer parte dessa religião. Tal interpretação está apenas meio-certa. O apóstolo realmente critica o judaísmo, mas não usa o termo com o sentido de “todo o conjunto de ordens divinas gerais e mosaicas formalizadas nas Escrituras Sagradas dos judeus”. Em outras palavras, Paulo não está falando de um judaísmo verdadeiro, uma religião de fato fincada nas Escrituras judaicas – as quais Paulo seguia. O termo usado pode ter uma pitada de ironia. Chamar de “judaísmo” todo o conjunto de práticas e crenças dos judeus e rabinos descrentes no Messias Yeshua é fazer alusão à visão deles de si mesmos: os verdadeiros representantes da religião judaica e os reais descendentes de Israel. A visão orgulhosa de muitos rabinos já era criticada por João Batista:

“Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: ‘Temos por pai Abraão’; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Lc 3:8 e Mt 3:8-9).

Jesus também combateu o orgulho desse tipo de afirmação. Falando sobre a necessidade das pessoas serem libertas, os rabinos questionam: “Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: ‘Sereis livres’?” (v. 33). Jesus explica que a libertação é do pecado e afirma que embora eles fossem descendentes de Abraão, não faziam as obras de Abraão, de modo que o pai deles era o diabo (vs. 34-47). Para o profeta João Batista e o Messias Jesus, descender fisicamente de Abraão não fazia de ninguém automaticamente santo, mas sim se arrepender dos pecados e seguir a Palavra de Deus. O ensino advém da Torá e dos Profetas. É a Torá e os Profetas que falam sobre a importância de “circuncidar” o coração, analogia que alude a uma postura piedosa e devota ao Senhor (Lv 26:41; Dt 10:16, 30:6; Jr 4:4, 6:10, 9:25-26; Ez 44:7-9).

Em suma, Paulo não pretende criticar a própria religião bíblica da qual fazia parte, mas um judaísmo distorcido. Isso implica que para o Novo Testamento existem dois tipos de judaísmo: um falso (distorcido) e um verdadeiro (bíblico). Semanticamente, isso fica mais claro em Apocalipse 2:9 e 3:9, nos quais o próprio Messias afirma existirem os que se dizem judeus e não são, mas mentem, sendo antes sinagoga de Satanás. Se há os judeus falsos, há os verdadeiros. Logo, também existe um judaísmo verdadeiro e, claro, uma sinagoga de Deus. Nem João, escritor do Apocalipse, nem Jesus, o Messias, estão interessados em negar o judaísmo verdadeiro. E Paulo segue a mesma linha.

Outro ponto interessante do relato de Paulo é que ele afirma ser extremamente zeloso das tradições dos seus pais. Não fica claro que ele se refere aos pais diretos ou aos seus ascendentes como um todo. A segunda opção é mais provável, pois era um costume no oriente antigo chamar os ascendentes de “pais”. Assim, Paulo está englobando em seu judaísmo antigo não só a Torá Escrita, mas todo o corpo de tradições dos anciãos. Essas eram tradições de homens e o apóstolo deixa isso claro no contexto. Ao repreender os gálatas por estarem seguindo outro evangelho, afirma que eles não deveriam se deixar levar por ensinos meramente humanos e que ele mesmo não aprendera o evangelho de homem algum (vs. 9-12).

O evangelho verdadeiro, ao contrário da tradição rabínica e outras filosofias mundanas, fora pregado a Paulo por revelação e se coadunava com as Escrituras. Isso dava certeza ao apóstolo de que seguia a verdade e não ideias de homens como outrora.

Na continuidade da carta aos gálatas, o mesmo pressuposto permeia os argumentos de Paulo: existe um judaísmo distorcido, seguido por muitos rabinos e judeus, repleto de tradições que são encaradas como Lei judaica. Assim, nem tudo o que está na “Lei” judaica está na Lei de Deus. E muito do que está na “Lei” judaica – no caso, o judaísmo distorcido a época – é contra a própria Torá divina. O mau exemplo da postura de Pedro e outros crentes judeus em relação a comer com gentios (já comentado em outro tópico), é citado por Paulo no capítulo 2, comprovando que suas críticas eram ao conjunto de tradições, não à Torá.

As “obras da Lei”

 “Nós, judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado” (Gl 2:15-16).

Essa é a continuação da crítica feita por Paulo a Pedro. Após questionar por que Pedro agia de maneira hipócrita (se unindo covardemente a quem seguia todo o conjunto de tradições dos anciãos e impunha a circuncisão aos gentios), Paulo começa a explicar, no trecho supracitado, que mesmo os judeus não eram justificados por obras da Lei.

Muitos interpretam a expressão “obras da Lei” como mandamentos da Torá. De fato, cumprir mandamentos não resolve o problema do pecado, pois não apaga os erros do passado, não anula a inclinação natural à imperfeição, tampouco capacita o homem a um cumprimento perfeito e integral da Lei. Assim, a justificação não pode mesmo vir da Torá. Constatar isso não é, de forma alguma, criticar a Torá, mas reconhecer que a função de justificar, salvar e santificar é do Messias de Deus, não da sua Lei. À Torá cabe servir de padrão de conduta para o homem.

Entretanto, embora tudo isso seja verdade, não é exclusivamente sobre a Torá de Deus que Paulo está falando ao usar a expressão “obras da Lei”. Ele está falando, como já vimos, sobre todo um conjunto de tradições e regras sustentadas por rabinos e ensinadas ao povo. Assim, isso envolvia não só a observância da Torá, mas toda a tradição judaica extrabíblica (o que incluía o costume de não entrar na casa de gentios e outras classes de pessoas, nem comer com eles). Vamos expandir o entendimento.

A expressão “obras da Lei” não foi criada pelo apóstolo do nada. Dentre os Manuscritos do Mar Morto (descobertos entre os anos de 1947 e 1959 na região de Qunram, em Israel), há um pergaminho chamado por uma expressão que ele contém: Miqsat Ma’aseh Ha-Torah (abreviado como MMT ou 4QMMT). Essa expressão pode ser traduzida do hebraico como “Algumas obras (ou atos, ou regras, ou preceitos) da Torá”. Trata-se de uma carta de algum membro da comunidade judaica sectária de Qunram (existente por volta do séc. II a. C. até o início do séc. I d. C.) que versa sobre regras haláquicas seguidas pela seita. Expressão semelhante também é encontrada em outros manuscritos de Qunram (4QFlor 1.1-7; 1QS 5.20-24; 6.18).

O teólogo James Dunn comenta que as expressões encontradas nesses documentos são regras e interpretações próprias da comunidade a respeito do Templo, do sacerdócio, dos sacrifícios e da pureza. Desta maneira, atos ou obras da Lei eram entendidos pela seita “como tudo aquilo que a Lei exige de um membro leal da aliança. Mas ‘tudo o que a Lei exigia do membro leal da aliança’ significava na prática efetivamente o entendimento sectário qumrânico daquilo que a Lei exigia” (DUNN, 2011, p. 320). Em outro trecho, Dunn ressalta que o manuscrito 4QMMT “termina urgindo os destinatários a seguirem as halacot [regras de conduta] da seita, afirmando-os que ao cumprirem-nas isto será contado para a justiça” (IBDEM, p. 655).

Há, portanto, duas características básicas que definem a expressão “obras da Lei” nos manuscritos do Mar Morto: interpretações próprias e observância legalista (visando a justificação). A doutora em Ciências da Religião, Elisa Rodrigues, levanta dois pontos que considera incontestes a respeito da 4QMMT:

“(1) Os autores da carta são contrários às lideranças que aceitam a mistura de judeus e gentios e os acusam de profanação. (2) Para os autores de 4QMMT, o grupo de Qumran deve buscar a separação dos de fora e a pureza na vida social e religiosa como forma de afastar-se do conselho de Belial, ser justificado e obter o bem para Israel” (RODRIGUES, 2006, p. 8).

As expressões usadas nos escritos da comunidade de Qunram revelam algo do qual o Novo Testamento oferece claras evidências e o Talmude atesta: os judeus do período intertestamentário até o primeiro século tinham forte inclinação a colocar tradições no mesmo patamar da Torá. Rodrigues cita cinco grandes blocos temáticos do documento, afirmando que dentre eles estavam “a separação entre os gentios e suas coisas dos membros da seita qumrânica” e “as pessoas impuras que não podem entrar na assembleia”. Diz ainda: “A recomendação clara dos autores do 4QMMT é que não se misturem, sejam separados e abstinentes dos assuntos dos gentios e dos que se misturam com não judeus” (IBDEM, p. 13).

Como podemos ver, era parte fundamental das “obras da Lei”, uma visão separatista em relação aos gentios e outros grupos considerados “impuros”. Exatamente a visão que Jesus combateu por não se coadunar com a essência da Torá e dos Profetas. Em suma, as “obras da Lei” eram uma mistura de observação legalista dos princípios da Torá com uma série de tradições e interpretações extra e até contrárias à Torá.

James Dunn conclui que Paulo conhecia esse conceito judaico de obras da Lei: regras de distinção que contavam para a justiça. Assim, ele fez uso da expressão com o mesmo sentido em suas cartas. Podemos ir mais longe que Dunn. Paulo sabia que o conceito se ligava intimamente a regras e concepções que além de não constarem nas Escrituras, as contradizia. Assim, em Gálatas 2, Paulo usa a expressão para se referir especificamente ao conjunto de tradições extrabíblicas do judaísmo distorcido – o mesmo judaísmo ao qual ele se refere no primeiro capítulo. E isso fica patente no fato de que a prática de Pedro criticada por Paulo não era preceito da Torá escrita, mas uma tradição ou costume judaico ensinado por rabinos. A crítica às obras da Lei, portanto, não é uma rejeição da Torá, mas das distorções humanas feitas dela.

A Lei Judaica

“Porque se torno a edificar aquilo que destruí [isto é, a conduta do judaísmo distorcido de se justificar pelas obras da Lei], a mim mesmo me constituo transgressor. Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois, se a justiça é mediante a lei, segue-se que morreu Cristo em vão” (Gl 2:18-21 – grifos meus).

Esse trecho é a continuação do discurso de Paulo a Pedro. Muitos cristãos entendem que a expressão “morri para a Lei” comprova que o apóstolo era contrário a Lei e que ela foi abolida na Nova Aliança. A verdade é que isso não teria muito sentido no contexto que temos analisado. Desde o início da carta, vimos que Paulo falava contra um judaísmo distorcido, repleto de tradições antibíblicas (como não comer com gentios). As obras da Lei não eram a Torá pura e sua observância sadia, mas a mistura dela com preceitos de homens e sua observância legalista, como se a mesma servisse à justificação. Paulo não se opõe à Torá em si. Devemos respeitar esse contexto. Mas, então, o que o apóstolo quer dizer com “morri para a Lei”? O teólogo judeu messiânico David Stern, lança luz sobre o tema:

“A palavra hebraica ‘Torá’, literalmente ‘ensinamento, doutrina’ é a versão tanto da Septuaginta quanto do Novo Testamento para a palavra grega ‘nomos’, que significa ‘lei’. […] No judaísmo a palavra ‘Torá’ pode significar:

(1) Chumash (o Pentateuco, os cinco livros de Moisés); ou

(2) O Chumash mais os Profetas e os Escritos, ou seja, o Tanakh (conhecido pelos cristãos corno o Antigo Testamento; veja 4:4-10N); ou

(3)  Isso mais a Torá Oral, que inclui o Talmud e outros materiais legais; ou

(4) Isso mais todas as instruções religiosas dos rabinos, incluindo materiais éticos e homiléticos” (STERN, 2007, p. 50).

O que Stern afirma é o que temos defendido em nossa análise. Torá (“Nomos”) pode, por vezes, se referir a mais do que a Lei de Moisés pura e simples. Daí o fato de Jesus, mesmo cumprindo fielmente a Lei, ser acusado de transgredi-la por curar no sábado ou permitir que seus discípulos peguem espigas para matar a fome; daí Pedro precisar explicar minuciosamente aos irmãos judeus porque entrou na casa de um gentio e comeu com ele (At 11:1-18). Essa mescla entre Lei Escrita, Lei Oral e interpretações rabínicas consagradas formando uma Lei integrada (a Lei Judaica) tem sido o padrão do judaísmo por séculos e já o era na época de Jesus. E ser judeu de verdade, nessa visão, é seguir todos esses preceitos.

Há um exemplo análogo no catolicismo romano. Para a Igreja Católica, o conceito de Sola Scriptura é falso. Ela se guia por um tripé formado por Bíblia Sagrada, tradição e magistério. Os três pilares tem igual peso. Assim, não é necessário que uma doutrina católica seja desenvolvida a partir da Bíblia e por meio de critérios firmes de interpretação. Se a Igreja, através de sua tradição e magistério, afirmar uma doutrina, esta é verdadeira. Cada coluna do tripé é infalível doutrinariamente. Na prática, portanto, um católico romano pode expressar frases como “a Lei católica ordena/proíbe X”, “o catolicismo ordena/proíbe Y”, “ser católico é agir dessa forma”, e as leis e atos citados não serem bíblicos, constando apenas na tradição.

A implicação básica desse exemplo é que um cristão católico que passe a seguir apenas a Bíblia será considerado transgressor da Lei católica e do catolicismo. Pois era quase isso o que acontecia com Jesus no judaísmo do primeiro século. O Messias Yeshua era um “Judeu Sola Scriptura”. Os rabinos e o povo, no geral, não. A diferença para com o catolicismo romano é que o tripé “Bíblia-Tradição-Magistério” não era uma doutrina tão formal e oficial. Isso dava a Jesus a margem para questionar a tradição e deixar os mestres sem resposta. Essa margem não existe no romanismo.

Então, voltamos ao texto de Gálatas 2:19. Pelo contexto, o apóstolo Paulo certamente não está falando sobre a Torá pura e simples, mas sobre a “Lei” Judaica no geral. Stern, especificamente sobre esse verso, cita o texto grego original em seu Comentário Judaico do Novo Testamento: “Egô gar dia nomou nomô apethanon, literalmente ‘Porque eu mediante a nomos para a nomos morri’”. Posteriormente, ele explica:

“[Paulo] evita a forma natural da palavra no grego, lado a lado, e coloca duas formas diferentes da palavra ‘nomos’ em sequencia. Isso sinaliza para o leitor que algo incomum está ocorrendo, especificamente que o sentido da primeira ‘nomos’ difere do sentido da segunda. Minha tradução expandida traz à luz o fato de que a primeira ‘nomos’ é a verdadeira Torá, a que para se compreender de modo apropriado demanda fidelidade confiante; enquanto a segunda é a deturpação da Torá em um sistema legalista” (IBDEM, p. 585).

Dos escritos de Paulo se depreende que, para ele, havia duas visões diametralmente opostas em relação à Torá: (1) a de que ela é corretamente interpretada por Cristo Jesus, o qual também é o cumprimento dos sacrifícios e festas do sistema mosaico; (2) a de que ela é corretamente interpretada pelos rabinos do judaísmo distorcido – o que muitas vezes implicava a negação de que Jesus é o cumprimento dos sacrifícios e festas do sistema mosaico.

Estar debaixo da primeira Torá, a “Lei de Cristo” (Gl 6:2 e I Co 9:21), é bom. Estar debaixo da segunda Torá, a dos rabinos, é ruim. A primeira é verdadeira e capta a essência da Lei de Deus, que é o amor. A segunda é falsa e contraria sua essência. A primeira foca em Cristo Jesus e seu ensino; e o próprio Cristo leva ao cumprimento dela pelo Espírito Santo. A segunda foca nos mandamentos escritos e tradições orais; e ela não capacita ao cumprimento.

Quando em sua defesa de acusadores em Jerusalém, o apóstolo Paulo afirmou que seguia o que chamavam naquela época de “Caminho” (de Jesus Cristo), acreditando em tudo o que estava na Torá e nos Profetas (At 24:14). Assim, temos duas visões distintas da Torá: a de Cristo e a dos rabinos. É isso o que Paulo procura distinguir no verso 19 ao usar dois termos diferentes para “Nomos”. Uma boa tradução possível para o verso, respeitando o contexto e a intenção do apóstolo, seria: “Porque eu, mediante a Torá de Deus, para a Torá dos homens morri”. Ou ainda: “Porque eu, mediante a Torá de Deus, para a Torá distorcida e legalista morri”.

No verso 21, a conclusão de Paulo não poderia ser outra: se a justiça fosse por meio do legalismo (“eu cumpro regras e ganho mérito”) e tradições rabínicas, Jesus Cristo teria morrido em vão. Isso, de alguma forma, anula a Torá? Em Romanos 3:31, Paulo afirma enfaticamente que não; ao contrário, confirma a Torá.

Circuncisão de gentios

“Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse: ‘Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem. Ora, Deus, que conhece os corações, lhes deu testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos concedera. E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pela fé o coração. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram” (At 15:7-11).

Este é o texto em que Pedro, no Concílio de Jerusalém, defende que se deveria impor aos gentios a circuncisão. Explico detalhadamente sobre esse concílio no texto “O que o Concílio de Jerusalém (Atos 15) nos ensina?”. O ponto que quero explorar aqui tem a ver com uma visão corrente dessa passagem. Muitos cristãos imaginam que a imposição da circuncisão aos gentios era um preceito da Torá; e que a liberação foi uma decisão apostólica contrária à Lei. Na verdade, é justamente o oposto.

A circuncisão é instituída em Gênesis 17:9-14 como um sinal da aliança entre Yahweh, Abraão e a sua descendência física. Os únicos gentios que deveriam obrigatoriamente receber esse sinal eram os servos comprados por Abraão – presumivelmente porque passariam a viver para sempre na família e na casa do patriarca. Não existe qualquer mandamento na Torá que imponha a circuncisão aos gentios que desejavam seguir ao Senhor. Também não há qualquer passagem que afirme ser o rito necessário à salvação dos que não eram judeus. Nem faria sentido, já que o sinal tinha relação primária com uma aliança étnica/nacional. Era o símbolo da eleição funcional de Israel. Nada tinha a ver com salvação de gentios e muito menos garantia a salvação dos hebreus.

É verdade que incircuncisos não podiam comer do cordeiro da Páscoa, devendo passar pelo rito caso quisessem fazê-lo (Êx 12:42-49). Porém, isso não indicava que a salvação estava indisponível aos gentios incircuncisos. A proibição era simbólica: a celebração da Páscoa representava, num primeiro nível, a libertação do povo hebreu do Egito, a fim de rumarem para a sua terra prometida. Era, portanto, uma festa intimamente ligada ao cumprimento da promessa de Deus a Abraão, a qual instituía Israel físico como herdeiro da benção divina e agente abençoador do mundo. Ela também indicava que o Cordeiro Salvador vinha primeiramente a Israel. Por isso, não fazia sentido comer da Páscoa sem fazer parte da aliança física. A aliança física era com Israel, com os circuncisos. Tal fato, ressalta-se, nada tem a ver com salvação, mas com eleição funcional.

Não obstante, o gentio se encontra também nessa aliança. Não na parte física. Não na função que tange aos hebreus étnicos e circuncisos. Ele se encontra na parte da aliança em que Yahweh diz a Abraão: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3). “Todas as famílias da terra” significa que não só a descendência de Abraão, isto é, a nação israelita, seria abençoada com a Torá, os Profetas e o Messias, mas todas as outras a partir de Israel.

É exatamente esse ensino decorrente de uma leitura correta (e até óbvia) da Torá que Paulo ressalta em Gálatas 3:8-9 e Romanos 4:9-25. Ele percebe que a circuncisão não era para a justificação, salvação e santificação. Era apenas um sinal da eleição funcional de Israel. Os gentios não só não precisavam do sinal para servirem a Deus, como eram salvos da mesma maneira que os judeus: através da fé. A aliança em Gênesis 12 era um prenúncio de que gentios podiam e deviam se achegar a Deus, independente de serem circuncidados ou não. Isso no próprio Antigo Testamento.

Uma leitura nas passagens da Tanach que mencionam conversões de gentios, convites de Yahweh aos não judeus para o servirem, preocupação com a pregação da Palavra aos outros povos e promessas de evangelização ostensiva às nações estrangeiras é muito elucidativa. Elas nunca falam sobre gentios sendo circuncidados. Isaías 56 é talvez a passagem mais sugestiva. Yahweh se limita a falar sobre guarda do sábado e abstenção de fazer o mal. Se a circuncisão era requisito de entrada na fé hebraica, condição sine qua non para começar a seguir ao Deus de Israel, é pouco provável que não fosse citada em alguma passagem, sobretudo em Isaías 56, como obrigatória aos gentios. Mas o que parece é que abraçar a aliança de Yahweh, para o gentio, era ser alcançado pela benção ao Israel físico e não, necessariamente, tornar-se parte do Israel físico.

Isso de forma alguma é uma quebra da Torá, mas o cumprimento dela. A imposição da circuncisão aos gentios, na antiga ou na nova aliança, é contra a Lei, ilegal, antibíblica, oposta ao preceito divino. E a visão dela como elemento de justificação é uma aberração humana. Quando compreendemos isso, entendemos que o “partido da circuncisão” na Igreja, composto por muitos fariseus, se baseava não na Torá, mas em tradição.

A tradição que gerou essa interpretação antibíblica pode ser facilmente mapeada. Como temos visto, era predominante entre os rabinos (sobretudo fariseus) o pensamento de que os gentios eram impuros ritualmente. Embora eles pudessem participar dos cultos nas sinagogas, não era recomendado entrar em suas casas e/ou comer com eles. Quebrar essa tradição era quase como quebrar a Lei.

Ora, uma vez que agora o evangelho era pregado de modo ostensivo e o contato com gentios se tornava bem mais próximo que outrora, muitos judeus e fariseus crentes no Messias Yeshua entenderam que os gentios deveriam se purificar ritualmente. Só assim seriam aceitos por Deus e poderiam se misturar com os judeus. E como fazer isso? Em primeiro lugar, tornando-os “como o natural da terra [de Israel]” (Êx 12:48), isto é, operando neles a circuncisão. Em segundo lugar, cumprindo todos os mandamentos da Torá referentes a judeus (desde borlas nas vestes à participação nas festas), as regras haláquicas dos anciãos, as interpretações rabínicas tradicionais, a Torá Oral. Então, o gentio era purificado diante de Yahweh e dos judeus; e salvo.

Como fica claro, o partido da circuncisão não estava seguindo a Torá, muito menos honrando o Messias. Tradições humanas antibíblicas estavam sendo usadas como base para interpretar as Escrituras; os gentios estavam sendo afastados, sendo considerados impuros; e o sacrifício de Jesus estava sendo obliterado pelo legalismo, pelo judaísmo distorcido, pelas “obras da Lei”. A circuncisão de gentios, conquanto não fosse uma tradição ela mesma, era fruto direto de tradição.

Concluímos, portanto, que quando o Concílio Apostólico de Jerusalém decide por não impor a circuncisão aos gentios, toma uma decisão legal, baseada no ensino correto da Torá e extremamente judaica, no sentido do judaísmo bíblico. Aliás, mesmo a posição dos judeus rabínicos (do segundo século até hoje) é contrária à imposição da circuncisão aos gentios. O judaísmo rabínico (assim como o messiânico) não é proselitista. Os judeus creem que gentios não precisam se tornar como que “judeus naturais”. Podem e devem servir a Yahweh na sua condição funcional de gentios, o que não é mérito, tampouco demérito. Apesar disso, o judaísmo rabínico tem sua parcela de culpa no falso ensino da imposição do rito aos gentios. Afinal, ele é fruto da mistura do evangelho de Cristo com as tradições rabínicas.

A “Lei dos Mandamentos em Ordenanças”

“Porque ele [Jesus] é a nossa paz, o qual de ambos [judeus e gentios] fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade” (Ef 2:11-16 – grifo meu).

Muitos cristãos interpretam esse trecho da carta de Paulo aos efésios como uma prova de que a Lei foi abolida. Mas essa conclusão é extremamente apressada. Em primeiro lugar, a expressão usada pelo apóstolo Paulo para se referir à lei nessa passagem não se encontra em nenhum outro verso da Bíblia. A expressão literal é “Lei dos Mandamentos em Ordenanças” (o original não conta com o “na forma” ou “expressos em” que muitas versões trazem). Ora, se a palavra Lei (Nomos/Torá) já podia possuir sentidos distintos a depender do contexto usado, às vezes englobando até tradições extrabíblicas, a palavra Lei seguida de termos complementares pode muito mais. É óbvio que Paulo chamava a atenção para algo a mais além da mera Torá Escrita. Da mesma forma, aliás, como fez na passagem de Gálatas 2:19, ao usar duas variações do termo Nomos.

Em segundo lugar, o contexto não comporta uma crítica à Torá. Paulo fala que havia uma parede de separação entre gentios e judeus. Chama essa parede de inimizade. Ou seja, judeus e gentios possuíam inimizade. Alguns versos antes, ele diz os gentios eram chamados de incircuncisão pelos que eram circuncisos na carne. Também que estavam separados da comunidade de Israel e alheios às alianças da promessa. Ora, essa não é uma leitura da Torá.

A Torá, como temos visto, abraçava os estrangeiros e convidava os gentios à adorar o Senhor. Há histórias de conversões dos gentios e promessas divinas de aceitação deles e pregação ostensiva do evangelho. A própria aliança de Deus com Abraão incluía a “benção a todas as famílias da terra”. Não havia imposição da circuncisão e o Senhor não requeria participação nas festas sagradas para os gentios serem salvos. Em vez do rito da circuncisão, Yahweh solicitava a guarda do sábado e a abstenção do mal. Então, não, a parede de separação chamada inimizade não era um preceito da Torá. Não era a Torá que causava esse problema. O que era então? A tradição.

É curioso como muitos cristãos são rápidos em querer incluir como problemas o sábado e a distinção entre alimentos puros e impuros como parede de inimizade entre judeus e gentios. Tais preceitos não representavam problemas à época. Os gentios estavam bem acostumados com a guarda do sábado. Iam às sinagogas nesse dia, inclusive. E não há tão pouca variedade de alimentos no mundo para que a alimentação kosher dos judeus seja uma restrição tão severa. Por outro lado, os mesmos cristãos demoram a se lembrar de outros costumes, estes sim, causadores de grandes problemas: não entrar na casa de gentios; não comer com gentios; manter preconceitos étnicos; praticar o rito da lavagem de mãos para se purificar religiosamente; impor aos gentios circuncisão, festas judaicas, prática de holocaustos, dias de jejum específicos, maneiras legalistas e ascéticas de se guardar a Torá (incluindo aí o sábado); proibição de curar aos sábados; etc.

De tudo isso, o problema da circuncisão era o mais grave. Ele realmente separava os judeus crentes dos gentios, criando cisão na Igreja de Cristo e atrapalhando a pregação do evangelho. Por isso, o apóstolo Paulo bate nessa tecla em 7 epístolas e 12 passagens diferentes (Rm 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Co 7:18-19; Gl 2:12, 5:2-11 e 6:12-15; Fl 3:2-5; Cl 2:11-13, 3:11; Tt 1:10), incluindo Efésios 2:11. Esse verso é claramente alude ao espírito preconceituoso e bélico de alguns judeus para com os gentios. Num contexto em que o maior problema da Igreja é a controvérsia da circuncisão, é óbvio que Paulo tem em mente uma crítica a quem mantinha essa postura separatista e antibíblica em relação aos gentios: “os da circuncisão”.

Em terceiro lugar, não sabemos se, à exemplo da expressão “obras da Lei”, a expressão usada por Paulo em Efésios era corrente no contexto judaico. Talvez fosse e tivesse um sentido diverso de mera Lei. Isso não nos impede de postular o sentido. Afinal, no caso das “obras da Lei”, mesmo não conhecendo o uso pela comunidade de Qumram, dá para deduzir pelo contexto da epístola aos Gálatas, os demais escritos de Paulo e o pano de fundo judaico da época que a expressão se referia não à Torá pura, mas à visão legalista dela e tradições com peso de Lei. A descoberta de Qumram apenas concretizou o que se deduz por regras lógicas de interpretação bíblica. O mesmo pode ser feito no caso da expressão de Efésios. Vejamos.

Considerando que Paulo tenha cunhado o termo, o que ele faz aqui provavelmente é contrapor duas visões da Torá. Ele chama a sua visão da Torá de “Lei de Cristo” (Gl 6:2 e I Co 9:21). Era a Torá interpretada por Cristo e que também apontava para ele. Logo, nessa visão da Torá, Cristo é o centro, tanto por ser o seu supremo intérprete, quanto por ser aquele do qual ela fala e que a cumpre.

“Lei dos Mandamentos em Ordenanças”, por sua vez, é a visão da Torá interpretada por rabinos de um judaísmo distorcido. Aqui o centro são os próprios mandamentos. Isso significa que Paulo está falando de uma visão legalista da Torá, onde a Torá mesma justifica o homem. Essa Torá cujo centro são os mandamentos está dentro, envolta, no interior de “Ordenanças”. Que ordenanças são essas? Certamente não as de Deus, pois as ordens de Deus não possuem ligação com o legalismo. Assim, essas ordenanças só podem ser as regras haláquicas dos rabinos. Afinal, eles são os intérpretes da Lei. Suas tradições precisam envolver toda a Lei dos Mandamentos. Em suma, com a expressão Paulo queria dizer algo como: “Jesus aboliu, na sua carne, o legalismo e as tradições rabínicas que distorcem a Torá, as quais criavam uma inimizade, um muro de separação, entre judeus e gentios”. O problema, mais uma vez, não era a Torá.

Rudimentos do mundo

“Assim, também nós [judeus], quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo. […] Outrora, porém, não conhecendo a Deus, [vós, gentios] servíeis a deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos?” (GL 4: 3, 8-9 – grifos meus).

Muitos cristãos creem que os tais “rudimentos do mundo”, se referem a mandamentos da Torá. Isso porque os versos de 1 a 5 falam sobre o período em que os judeus viviam sob a tutela da Torá, antes de Cristo; e o verso 10, que parece ser complemento do 9, menciona que os gálatas estavam guardando dias, meses, tempos e anos. Mas há vários problemas nessa interpretação. Vejamos.

Em primeiro lugar, quem ordenou os israelitas a guardarem os mandamentos da Torá foi o próprio Deus. Não se tratavam de invenções humanas. Logo, seria muito estranho Paulo chamar esses mandamentos de “rudimentos do mundo”. Em segundo lugar, Paulo diz que os gálatas estavam voltando a esses rudimentos. Mas os gálatas no passado eram pagãos, não judeus. Eles serviam a outros deuses, não ao Deus da Torá. Então, como eles estavam retornando aos mandamentos da Torá? E como Paulo poderia relacionar a Torá à idolatria se ela pertencia a Yahweh, não aos deuses pagãos?

Como fica claro, o contexto não suporta bem a ideia de que o apóstolo Paulo está se referindo à mandamentos da Torá. Isso fica ainda mais evidente quando observamos o uso da mesma expressão – rudimentos do mundo – na epístola aos Colossenses. Lemos:

“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do mundo e não segundo Cristo; porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade. […] Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens?” (Cl 2:8 e 20-22 – grifos meus).

Claramente, o apóstolo Paulo relaciona os “rudimentos do mundo” a “filosofias e vãs sutilezas”, “tradição de homens” e “preceitos e doutrinas e homens”. Ou seja, não é a Torá pura que Paulo está criticando, mas sim as amálgamas entre tradições humanas e preceitos da Torá e sob a égide do legalismo. Isso está em pleno acordo com o judaísmo cristocêntrico do apóstolo. Para ele, se a fé em Cristo não é o centro, mesmo que se tenha a Lei como tutor, o pecado e as tradições de homens nos dominarão (Rm 6:12-14, 7:4-25 e 8:1-4). Por isso, na antiga aliança, quando Cristo e a unção geral do Espírito Santo eram só promessas, todos (judeus e pagãos) estavam mais suscetíveis às tradições humanas e ao pecado. Esse e o argumento do apóstolo Paulo em Gálatas 4:1-11. E era a isso – tradições – que os gálatas estavam retornando.

A heresia que afastava os gálatas e os colossenses do evangelho genuíno não era possuía apenas raiz judaica. Ela era sincrética e protognóstica. Os crentes dessas duas cidades estavam misturando rituais judaicos da antiga aliança a crenças astrológicas, exotéricas, de religiões sazonais e de apelo à busca pela gnose secreta. A implicação é que não só a Torá era distorcida, como Cristo deixava de ser o suficiente salvador do mundo para ser apenas mais um dos elementos ritualísticos do sincretismo. Assim, a preocupação de Paulo não era com os preceitos da Torá, mas com o sistema ritualístico distorcido como um todo.

É por essa razão que, aos gálatas, o apóstolo faz alusão ao seu passado idólatra. O seu sistema de guarda de “dias, meses, tempos e anos” não era puramente bíblico, mas um retorno a tradições pagãs, agora com roupagem judaico-cristã e o forte legalismo do partido pró-circuncisão. É por essa razão também – esse sincretismo nefasto – que Paulo insiste várias vezes para que os crentes da Igreja de Colossos não aceitem o julgamento distorcido desses hereges (Cl 2:4, 8, 16 e 18).

Isso lança luz sobre Colossenses 2:16, aliás. O tema não é guardar ou não guardar os preceitos ali mencionados, mas não legitimar o juízo de quem possuía um sistema totalmente distorcido da Torá. Note que o verso 16 não diz “Ninguém, pois, vos julgue por guardarem…” ou “Ninguém, pois, vos julguem por não guardarem”, mas sim “Ninguém, pois, vos julgue POR CAUSA de comida e bebida, ou ia de festa, ou lua nova ou sábados”. Esse “por causa de” se refere ao modo de se guardar. Era isso o que estava em jogo. Assim como era no ministério de Jesus.

Jesus, guardando o sábado, era acusado pelos rabinos de transgredi-lo. Por quê? Porque não o guardava do modo como os rabinos julgavam correto. Assim, suas discussões não eram sobre guardar ou não guardar, mas sobre como guardar. O que estava em jogo era um julgamento errôneo. Era um julgamento baseado em tradição de homens. “[…] por que vos indignais contra mim, pelo fato de eu ter curado, num sábado, ao todo, um homem? Não julgueis segundo a aparência, e sim pela reta justiça” (Jo 7:24). “Ninguém, pois, vos julgue por causa de […] sábados” (Cl 2:16). Nada mudou. O problema ainda era a tradição.

Tudo isso está em acordo com o contexto. O sistema colossense estava repleto de ideias humanas, incluindo ensinos e posturas como culto aos anjos, o uso de supostas visões como validadores de suas ideias (v. 18) e o ascetismo (vs. 20-23). Não só o modo como estes homens exigiam a guarda de mandamentos da Torá estava distorcido, como as tradições se tornaram parte da Torá deles. “Ninguém, pois vos julgue por causa de […] sábados”. Em outras palavras, os colossenses não deveriam dar crédito a hereges que os acusavam de transgredir o sábado ou qualquer outro ponto da Torá, pois a base deles era antibíblica, ascética, gnóstica, sincretista, legalista – em suma, baseada em tradições. E o problema dos gálatas era exatamente o mesmo.

Vegetarianismo, dias fixos de jejum e abstenção de vinho

“Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões. Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu. […] Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus. […] É bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar” (Rm 14:1-6, 21).

A maioria dos intérpretes cristãos entende que esse texto está falando sobre preceitos da Torá como sábado, dias de festa e alimentos puros e impuros. Paulo estaria dizendo que tanto faz seguir ou não seguir as prescrições da Torá. Contudo, um olhar mais atento demonstra que não é esse o contexto.

Paulo inicia o capítulo falando que irá tratar de opiniões. Por essa razão o texto todo é brando. O apóstolo não condena nenhum dos lados das questões, dando liberdade para cada um fazer o que achar melhor contanto que não cause problemas aos irmãos. Só isso já torna improvável que o tema tratado seja mandamentos da Torá. Dois dos exemplos dados pelo apóstolo confirmam de modo indiscutível essa dedução: vegetarianismo e abstenção de vinho. Ambos os preceitos não são mandamentos bíblicos. Pode-se, claro, argumentar por esses hábitos em prol da saúde. Mas não são preceitos da Torá.

Por conseguinte, pelo contexto, deve-se entender que os tais dias separados também não se referiam a preceitos da Torá. Muitos teólogos têm sugerido que poderiam ser os dias fixos de jejum, prática comum entre judeus e cristãos no primeiro século (ver Talmud Bavli; Tratado de Ta’anit 12a; Didaquê 8:1; Lc 18:12; Mc 2:18-20). Também é possível que Paulo estivesse falando sobre algumas festas judaicas culturais (não prescritas na Torá) ou até mesmo o primeiro dia da semana, o qual talvez alguns cristãos já vissem como santo em função da ressurreição e julgassem quem não entendia assim. Nenhum ponto da Torá estava em jogo. A questão era meramente referente a tradições. Mas essas, desde que não impostas a ninguém, não eram antibíblicas.

Considerações Finais

O artigo procurou demonstrar que já no primeiro século da era cristã, na sociedade judaica, a tradição oral extrabíblica era tida com status igual (ou quase igual) ao da Torá Escrita. Isso, a partir do segundo século, se desenvolveria oficialmente no judaísmo rabínico, dando origem ao Talmude. A propensão rabínica para observar tradições como parte da própria Lei Judaica nos ajuda a entender porque os autores do NT algumas vezes tratam Lei e tradição como se fossem uma coisa só. Esse era o modo como a própria sociedade enxergava as tradições muitas vezes, de modo que as críticas podiam ser feitas de modo integrado. Isso não quer dizer que os apóstolos de Jesus, incluindo Paulo, não sabiam distinguir tradição extrabíblica de Escritura. O próprio Cristo havia dado o exemplo nesse sentido e orientado seus seguidores dessa distinção. Assim, Jesus se manteve cativo àquilo que fora escrito e comprovado como sagrado ao longo dos séculos.

A compreensão de que a religião judaica estava envolta de tradições antibíblicas e que, ademais, tradições de fora do judaísmo também instigavam as pessoas, revela como a Torá em si não era alvo de críticas. Os problemas combatidos pelos apóstolos nunca se referiam à Lei, mas sim a distorções da mesma. A imposição da circuncisão aos gentios, a proibição de se entrar na casa de gentios e comer com eles e as diversas restrições em relação ao sábado são exemplos de alduterações e interpretações rasas da Palavra. A essência da Lei e dos Profetas era trocada por ideias torpes desprovidas de amor e revestidas de preconceito. O ministério de Jesus e de seus apóstolos, tal como o de todos os profetas que os antecederam, procurou sempre fazer o povo retornar à essência da Torá, exaltando a Palavra de Deus e enfatizando a unidade das Escrituras. Assim, os autores do NT comprovam, de modo bastante cabal, que o problema sempre foi a tradição, nunca a Lei.

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Referências:

DUNN, James D. G. “A Nova perspectiva sobre Paulo”, Santo André: Academia Cristã, 2011.

RODRIGUES, Elisa. “Não misturar, não contaminar: as prescrições de 4QMMT – Limites e identidade social dos membros de Qumran”, São Bernardo do Campo: UMESP, 2006.

STERN, David H. “Comentário Judaico do Novo Testamento”, São Paulo: Editora Atos, 2007.

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Indicações de Leitura:

BACCHIOCCHI, Samuele. “Do Sábado para o Domingo: uma investigação do surgimento da observância do domingo no cristianismo primitivo”, tradução livre encontrada na internet.

KOSTENBERGER, Andreas J. e KRUEGER, Michael J. “A heresia da ortodoxia”, São Paulo: Vida Nova, 2014.

JUSTER, Daniel. “Raízes Judaicas: entendendo as origens da nossa fé”, São Paulo: Impacto Publicações, 2018.