Por Davi Caldas

Na quarta postagem dessa série, analisamos as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Daniel 9. Nessa quinta postagem, vamos analisar as interpretações católicas e protestantes em geral a respeito de Daniel 10, 11 e 12. Quem não leu as postagens anteriores, os links estão aqui (parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4).

Miguel, o Príncipe de Israel (Dn 10)

O capítulo 10 de Daniel não possui muitas novidades em termos escatológicos. Ele relata que Daniel fez um jejum de três semanas, vindo a ter uma visão no fim desse tempo (vs. 1-5). Na visão, Daniel vê um homem vestido de linho, com um aspecto esplendoroso e sobrenatural, e desfalece (vs. 4-9). Outro ser sobrenatural (ao que tudo indica, o anjo Gabriel) acorda o profeta na sequência e começa a falar sobre uma luta espiritual travada entre ele e o rei da Pérsia (vs. 10-19). O fim dessa luta resultaria no domínio grego (vs. 20-21). Essa profecia é apenas repetição de profecias anteriores e não há nenhum símbolo nesse capítulo para ser decifrado. Logo, as leituras de cada vertente aqui não diferem no que tange às informações escatológicas.

Entretanto, há um detalhe interessante nesse texto. O ser que fala com Daniel afirma que há um príncipe sobrenatural chamado Miguel que está lutando contra o rei da Pérsia também. Ele é chamado de “vosso príncipe”, isto é, príncipe de Daniel e, ao que parece, dos judeus em geral. Quem é este Miguel? Calvino menciona que algumas pessoas em sua época já criam que esse ser era o próprio Cristo em forma de Comandante dos Anjos. E ele simpatizava com essa ideia. Vejamos:

“Há quem pensa que a palavra Miguel representa Cristo, e não faço objeção a essa opinião. Evidentemente, é suficiente que todos os anjos mantenham vigilância sobre os fiéis e eleitos, embora Cristo mantenha a primeira posição entre eles, uma vez que ele é seu chefe e usa seu ministério e assistência em defesa de todo seu povo. Visto, porém, que isso não é geralmente admitido, deixo-o em suspenso por enquanto, e direi algo mais sobre o assunto no capítulo 12”.

Nesse primeiro trecho, Calvino não bate o martelo, mas deixa clara a opinião de que a discordância nesse ponto não era perfeitamente aceitável. As duas posições eram plausíveis. Ele continua em outro ponto:

“Parecia que Deus, pelo menos por certo tempo, havia deixado seu povo sem qualquer auxílio [nos eventos descritos em Daniel 10], e depois dois anjos foram enviados para pelejarem por eles: primeiro, um só foi enviado a Daniel; e então Miguel, que alguns pensam ser Cristo. Não faço objeção a este ponto de vista, porque ele o chama príncipe da Igreja, e esse título não parece de forma alguma pertencer a qualquer outro anjo, porém é peculiar a Cristo”.

Aqui Calvino já demonstra ser inclinado à ideia de que Miguel era Cristo. É um dos argumentos que usei ainda há pouco. Como indicado, Calvino volta a falar do tema ao comentar o capítulo 12 de Daniel. Ele primeiro torna a frisar a plausibilidade de ambas as interpretações:

“Por Miguel muitos concordam em interpretar como sendo Cristo a Cabeça da Igreja. Mas se parecer preferível entender Miguel como sendo o arcanjo, este sentido provará ser adequado, pois sob Cristo como a Cabeça os anjos são os guardiães da Igreja”.

Calvino finaliza o tema dando sua clara opinião em prol da interpretação de que Miguel era mesmo Cristo:

“Como afirmei ontem, Miguel pode significar um anjo; porém adoto a opinião dos que aplicam isso à pessoa de Cristo, porque se adéqua melhor ao tema representá-lo como se pondo em defesa de seu povo eleito. Ele é chamado poderoso príncipe, porque naturalmente colocou a invencível fortaleza de Deus contra aqueles perigos aos quais o anjo representa a Igreja como estando sujeita”.

 Essa, no entanto, é uma opinião defendida por poucos cristãos hoje em dia. Os próprios comentaristas da Nova Bíblia de Estudos de Genebra não parecem endossá-la. Eles se limitam a dizer que Miguel é descrito em outros lugares da Bíblia Sagrada “como um comandante dos santos anjos”. No comentário a Mateus 1:19, os intérpretes dizem: “Gabriel e Miguel são os dois únicos anjos nomeados na Bíblia”. Já no comentário a Judas 1:9, lemos: “Segundo Dan. 10:13,21; 12:01, Miguel é um dos principais anjos e o guardião especial de Israel. Em Ap. 12:07, Miguel leva as hostes angelicais na guerra contra o diabo e seus anjos”.

O Comentário Moody não oferece nenhuma nota sobre quem é Miguel no livro de Daniel, mas afirmam o seguinte no comentário a Apocalipse 12:7-9: “Aqui ele não é enfrentado por Cristo, mas por Miguel e seus anjos (Ap. 12:7; veja Dn. 10:13,21; Judas 9), que parece ser o líder da hierarquia angélica”.

A Bíblia de Estudo Apologia também se exime de comentar sobre Miguel no livro de Daniel, oferecendo, no entanto, uma nota sobre Apocalipse 12:7-9. Ela diz que Miguel é “o arcanjo designado para proteger Israel (Dn 12:1)”.

A Bíblia de Jerusalém faz um comentário um pouco maior e também não entende que Miguel é Cristo pré-encarnado. Ela diz:

“O Anjo de Iahweh que, em Zc 3:1-2, se opõe a Satã, recebe o nome de Miguel (‘Quem é como Deus?’) em Jd 9; ele transfere a Deus o encargo de reprimir o demônio. O mesmo combate é descrito em Ap 12:7-12. Miguel é o anjo protetor do povo de Deus (v. 21 e 12:1; cf. Ex 23:20+)”.

 Isaac Newton não comenta nada sobre quem era Miguel. Temos, portanto, duas teorias sobre a identidade de Miguel: ou ele é um anjo de alta patente criado por Deus ou ele é o próprio Cristo pré-encarnado, na posição de Comandante dos Anjos. Qual dessas teorias é mais bíblica? Vejamos.

A Bíblia fala, no AT, que algumas vezes Yahweh descia do céu (Gn 3:8-13, 11:4-6, 18:1-25). O curioso é que em várias dessas ocasiões, o texto bíblico identifica Yahweh primeiramente como “Anjo de Yahweh” e depois como o próprio Yahweh (Gn 16:7-13, 22:11-18, 32:24-30; Os 12:4; Ex 3:2-10, 13:21, 14:19-24, 23:20-23, 33:14-23, 34:5-9; Jz 6:11-27 e 13:3-22; Zc 3:1-2). Há duas interpretações geralmente propostas para o sentido desses textos: (1) o “Anjo de Yahweh” não é Yahweh, apenas o representa fielmente e, portanto, o texto confunde ambos; (2) o “Anjo de Yahweh” é Yahweh, pois o único que pode representar fielmente a Yahweh a ponto de ser confundido com Ele é o próprio Yahweh.

A segunda interpretação parece a muitos cristãos (embora não a maioria)  mais bíblica e plausível. Afinal, a Bíblia Sagrada diz que Jesus Cristo é divino e a expressão exata de Deus-Pai (Jo 10:30, 14:6-11; Cl 1:15-17; Hb 1:1-4; Fl 2:6-8; Cl 2:9). E o Anjo de Yahweh não só se confunde com o Pai nos textos, mas é descrito como tendo seu nome, sua autoridade e seu poder. Além disso, os textos dizem que a presença de Yahweh e a de seu Anjo é a mesma coisa. Cremos que nenhuma criatura poderia ter essa descrição, receber tamanha honraria. Assim, o Anjo de Yahweh só pode ser o Filho de Deus, que é um com o Pai e, portanto, o próprio Deus.

Ora, se o Filho de Deus é o Anjo de Yahweh no AT, é óbvio que Ele assumiu a forma de anjo em anjo em algum ponto da história. Afinal, Ele é Deus, não anjo. E por que Ele se tornou anjo? O NT também parece prover resposta para isso. Jesus diz que ninguém viu o Pai senão o Filho (Jo 1:18 e 6:46). Isso provavelmente quer dizer que os anjos do céu não vêem o Pai diretamente, mas vêem o Filho de Deus, que é a expressão exata do Pai. Mas por que não vêem ao Pai? Provavelmente porque sua glória é tamanha que os próprios anjos não poderiam vê-lo. Isaías 6:1-3 parece concordar com isso ao dizer que os anjos da presença escondem o rosto para não verem toda a glória de Deus Pai. Se este for o caso, então o Filho de Deus toma a forma de anjo para poder tratar visivelmente com os anjos. É a mesma coisa que Ele faz conosco quando toma a forma de homem.

Supondo que realmente Jesus pré-encarnado (o Filho de Deus) assumiu a forma de anjo. É natural pensar que esse anjo seja o mais glorioso e, claro, o chefe de todos os demais anjos. Curiosamente, a palavra Arcanjo significa “Chefe dos Anjos”. E o nome Miguel pode ser traduzido como “Quem é como Deus?” ou “Ninguém é como Deus”.

Não é curioso que haja um anjo que tem o cargo de chefe e um nome que nos lembra não existir ninguém como Deus? Isso não parece corroborar com a ideia de que o único que poderia ser chefe dos anjos e representante exato de Deus é o próprio Deus e mais ninguém. Logo, como Jesus é Deus, apenas Ele (quando pré-encarnado) poderia ser Arcanjo e representante de Deus. Note que na Bíblia não existe outro Arcanjo a não ser Miguel. Assim, é mais que razoável concluir que Arcanjo Miguel é Jesus quando ainda não encarnado. O Filho de Deus, muito antes de tomar a forma de homem, já havia assumido a forma de Chefe dos Anjos.

Para além de Judas 1:9, as três outras referências a Miguel parecem concordar com essa interpretação. Daniel 10:21 chama Miguel de príncipe de Israel. É interessante que Daniel 9:25-26 já havia feito uma profecia a respeito da vinda de um príncipe ungido após setenta semanas de anos (que a maioria dos cristãos entende ser Jesus). E Daniel 8:11 e 25, já tinham mencionado uma figura denominada “Príncipe do exército do céu” e “Príncipe dos príncipes”. E ainda Daniel 7:13-14 já havia falado sobre alguém como um “filho do homem” que recebia do Ancião de Dias todo o domínio, glória e reino de maneira eterna. É natural, portanto, entender que todos esses textos falam sobre o mesmo príncipe: Cristo.

Em Apocalipse 12:7 é dito que Miguel e seus anjos batalhavam contra Satanás e seus anjos. Uma vez que o conflito bíblico foi sempre entre Cristo e Satanás (desde a primeira profecia messiânica em Gênesis 3:15), que Satanás é chefe dos anjos maus e que, obviamente, Cristo é chefe dos anjos bons (e todas as criaturas), parece óbvio que Miguel aqui só pode ser Cristo. Os anjos pertencem a Cristo. Ele é o Criador. Não faz sentido que o texto esteja falando de outro “chefe”. Miguel, portanto, é o nome de anjo e de guerra do Filho de Deus. Quando Cristo age como Arcanjo, Ele é Miguel.

O texto de Daniel 10:13 tem sido usado para dizer que Miguel não poderia ser Jesus, pois “um dos primeiros anjos” não é “o primeiro”. Mas aqui há uma questão lingüística no texto original a ser analisada. A palavra traduzida como “um” é “echad”, que, embora realmente signifique “um”, também pode significar “primeiro”. No livro de Daniel, é possível ver a palavra “echad” com sentido de “primeiro” seis vezes (Dn 1:21, 9:1-2, 11:1, 6:2, 7:1). O profeta Daniel pode ter desejado dizer, portanto, “primeiro dos primeiros príncipes”. Ele tinha pelo menos uma boa razão “estilístico-teológica” para isso: enfatizar que o primeiro príncipe não é só primeiro, mas único (em sua espécie). É possível também que Daniel preferisse o termo “echad” em vez de “rishon” (primeiro), usada apenas quatro vezes (Dn 8:21; 10:4,12,13).

Finalmente, em Judas 1:9, temos Miguel não ousando repreender a Satanás em sua própria autoridade. Muitos usam isso para dizer que se Miguel não repreendeu a Satanás é porque não era divino. Mas a Bíblia indica que mesmo os homens (que são pecadores) podem expulsar/repreender demônios em nome de Jesus (Mt 10:8; Mc 6:7-13; Lc 10:17-20). Então, por que um ser angelical não o faria? A realidade é que esse argumento é inconclusivo para definir se Miguel é Cristo ou não. A razão mais plausível para que Miguel não tenha repreendido Satanás é que a repreensão ali, no contexto, tinha mais o sentido de “resposta malcriada” e de “juízo condenatório”. Afinal, Judas usa esse exemplo para dizer que se nem Miguel respondeu no mesmo nível baixo de Satanás, mas respondeu com um “O Senhor te repreenda”. Aliás, em Zacarias 3:2, nós vemos praticamente a mesma coisa. O texto diz: “Mas o Senhor [YHWH] disse a Satanás: O Senhor [YHWH] te repreende, ó Satanás; sim, o Senhor [YHWH], que escolheu a Jerusalém, te repreende”. Digno de nota é que o Yahweh que fala é o Anjo de Yahweh no verso 1. A passagem evidencia tudo que foi dito até aqui.

Note ainda que a expressão “O Senhor te repreenda” já é, em si mesmo, uma repreensão. Quando dizemos a alguém que desejamos que o Senhor a repreenda, estamos externando a ela que seus atos são dignos de repreensão divina. Logo, nós mesmos estamos dizendo que ela está errada e não deveria ter agido assim. Isso é repreensão. Ou seja, Miguel repreendeu a Satanás. Mas não de modo irreverente. E, com sua repreensão, demonstrou não só ser alguém respeitoso e que não se deixa levar pela ira, mas que sabe ser submisso ao Pai, mesmo tendo poder e autoridade para destruir Satanás com um sopro a hora que bem entender

O rei arrogante (Dn 11)

O capítulo 11 é uma continuação da fala iniciada em Daniel 10:20 pelo anjo que falava com Daniel. Os primeiros quatro versos apenas ressaltam que após a Pérsia viria a Grécia e as quatro divisões gregas posteriores a morte de Alexandre. Dos versos 5 até o 35, quase todos os comentaristas usados nessa série de postagens possuem a mesma visão: os eventos ali narrados se referem, segundo esses autores, a alianças e conflitos entre a divisão grega que ficou com o Egito (império ptolomaico) e a divisão grega que ficou com a Síria (império selêucida), denominados no texto como “Rei do Sul e Rei do Norte”. Isaac Newton, a exceção, tem o mesmo entendimento apenas até o verso 30, como veremos depois. De qualquer forma, as distinções interpretativas mais amplas entre todos os comentaristas se iniciam a partir do verso 36.

Farei um pouco diferente neste tópico. Em vez de comentar pontos fortes e fracos de cada visão em meio às citações, vou apenas expô-las e fazer um comentário geral no final. Para tanto, vejamos antes o que o texto de Daniel diz dos versos 36 a 39:

“Este rei fará segundo a sua vontade, e se levantará, e se engrandecerá sobre todo deus; contra o Deus dos deuses falará coisas incríveis e será próspero, até que se cumpra a indignação; porque aquilo que está determinado será feito. Não terá respeito aos deuses de seus pais, nem ao desejo de mulheres, nem a qualquer deus, porque sobre tudo se engrandecerá. Mas, em lugar dos deuses, honrará o deus das fortalezas; a um deus que seus pais não conheceram, honrará com ouro, com prata, com pedras preciosas e coisas agradáveis. Com o auxílio de um deus estranho, agirá contra as poderosas fortalezas, e aos que o reconhecerem, multiplicar-lhes-á a honra, e fá-los-á reinar sobre muitos, e lhes repartirá a terra por prêmio”.

 Calvino dá uma demonstração da extensão das divergências interpretativas sobre esta passagem, começando pelo verso 36:

“Há quem o aplique a Antíoco, e outros aos romanos, mas de uma maneira diferente daquela que eu apresentarei depois. Os expositores cristãos apresentam grande variedade, mas a maioria se inclina para o Anticristo como cumprimento da profecia. Outros, ainda, usam mais moderação, supondo ser Antíoco um tipo e imagem do Anticristo”.

 Na sequência, ele explica porque não concorda com a ideia de que o rei citado seja
Antíoco IV Epifânio:

“Antíoco não sobreviveu muito à profanação do templo, e então os acontecimentos que seguiram de modo algum se adequam às ocorrências de seu tempo. Tampouco seus filhos podem honestamente ocupar seu lugar, e daí devemos buscar algum outro rei, distinto de Antíoco e seus herdeiros”.

 Para Calvino, o rei só poderia se referir aos romanos. Ele explica:

“Pela palavra ‘rei’ não creio estar indicada uma só pessoa, mas um império, tudo o que envolve seu governo, seja através do senado ou dos cônsules ou dos procônsules. Isso não precisa parecer abrupto ou absurdo, quando o profeta esteve previamente discutindo as quatro monarquias, e quando ao tratar dos romanos ele denomina seu poder de reino, como se tivessem sobre si apenas um único governante. E quando falou da monarquia persa, ele não se referiu a um único governante, mas incluiu todos eles, desde Ciro até o último, Dario, que foi vencido por Alexandre. Esse método de linguagem já nos é bastante familiar, quando a palavra ‘rei’ às vezes significa ‘reino’. O anjo, pois, ao dizer um rei fará tudo, a alusão não é a Antíoco, pois toda a história refuta tal idéia. Além disso, ele não tem em mente um único indivíduo, pois onde acharemos um que se exaltasse acima de todos os deuses? Quem oprimiu a Igreja de Deus e fixou seu palácio entre dois mares e se assenhoreou de todo o Oriente? Tão-somente os romanos fizeram isso”.

 Calvino ainda fala longamente sobre os romanos antes de passar para a interpretação do verso 37. Aqui, ele reforça suas ideias e menciona também porque não crê que esse rei é o Anticristo:

“Não me admira ver que alguns apliquem esta profecia a Antíoco, experimentando alguma dificuldade com essas palavras; pois não podem satisfazer-se, uma vez que esta predição do anjo nunca se concretizou em Antíoco, que não negligenciou todas as divindades, nem o deus de seus pais. Então, com respeito ao amor das mulheres, isso não se adequa a tal pessoa. É fácil, porém, provar, por outras razões já mencionadas, a ausência aqui de toda alusão a Antíoco. Alguns aplicam esta profecia ao papa […]. Os que pensam estar aqui em pauta a pessoa do papa, nos lembrando que ele impôs o celibato obrigatório, por meio do qual a honra matrimonial é tripudiada”.

O intérprete reconhece que há “alguma leve correspondência” da teoria do Papa com o texto. Mas descarta a ideia por entender que a pauta do capítulo 11 tinha como intuito preparar “sustentar o espírito de seu povo até a vinda de Cristo”. Assim, personagens posteriores não teriam correspondência. Calvino, então, passa a explicar como que o império romano se adéqua à ideia de desprezo aos deuses e às mulheres. Basicamente, quanto ao desprezo aos deuses, ele argumenta que os romanos “tratavam o culto de suas divindades simplesmente como uma matéria de negócio”, sendo “destituídos de qualquer percepção da divindade” e não passando “de pretensos religiosos”. Eles “reivindicavam um poder divino que se aplicava a si próprios, e só admitiam a seus deuses o que criam ser útil a seus próprios propósitos”. Já sobre o desprezo ao desejo das mulheres, Calvino entende que a expressão simbolizava o desprezo aos sentimentos mais ternos. Ele pontua:

“É justamente como se o anjo dissesse: esse rei de quem profetizo será ímpio e sacrílego, ousando assim a desprezar todas as divindades; e então ele será tão mau, ao ponto de despir-se totalmente de todo sentimento de caridade. Observamos, pois, como os romanos eram completamente destituídos de afeição natural, não amando nem a suas esposas e nem o sexo feminino”.

Os intérpretes da Nova Bíblia de Estudo de Genebra não fecham a questão. Eles apenas comentam:

“11:36-12:03 Certos detalhes em 11:36-12:03 não podem ser harmonizados com os acontecimentos em torno da morte de Antíoco IV. Por esta razão, alguns intérpretes compreendem estes versos como descrevendo o Anticristo, que como Antíoco IV vai perseguir o povo de Deus pouco antes da segunda vinda de Cristo (cf. 12:1-3). Estes versículos descrevem o caráter do Anticristo, suas atividades, e o destino do povo de Deus. Esta compreensão exige um intervalo de tempo entre os eventos descritos em 11:21-35 e aqueles em 11:36-12:03”.

Curiosamente, eles não citam o argumento de Calvino de que o rei citado era Roma. São postas apenas a teoria de Antíoco e a do Anticristo. A Bíblia de Estudo Apologia comenta o seguinte:

“Neste ponto, o autor apresenta um rei que governará ‘no fim do tempo’ (v. 40). O seu reinado de terror inaugura um ‘tempo de angústia’ sem paralelos na história humana (12:1; Mt 24:21,29-31), e a ressurreição dos santos ocorre imediatamente depois que Deus livra seu povo do poder desse rei iníquo (12:2). Este rei não pode ser Antíoco IV (certamente não, nos versículos 40-45), mas é um personagem perverso e tirânico do fim dos tempos. Esta identificação está em conformidade com a descrição deste personagem, apresentado em outras passagens da Bíblia (7:8-11, 20-27; II Ts 2:3-10; Ap 13:4-8; 19:19-20), e foi amplamente aceita por toda a história da Igreja (por exemplo, Crisóstomo, Jerônimo, Teodoreto, Lutero). O súbito salto no tempo , desde Antíoco IV (v. 35) até o oponente escatológico do povo fiel de Deus (v. 36), é consistente com outros saltos no tempo anteriores no capítulo (vs. 2-3)”.

A Bíblia de Jerusalém defende a ideia de que os versos 36-45 continuam falando de Antíoco Epifânio. Eles explicam que Antíoco adorava a Zeus Olímpico, enquanto seus antepassados selêucidas honravam a Apolo. Também traduzem “o desejo das mulheres” como “o favorito das mulheres”, comentando que essa expressão é uma referência ao deus Adônis Tamuz.

O Comentário Moody faz as seguintes observações:

“Jerônimo declara que no seu tempo esta porção de Daniel era aplicada ao Anticristo pelos ‘nossos escritores’. E até os dias de hoje esta interpretação é a que prevalece. Damos abaixo as principais razões para defendermos que a profecia passa de Antíoco para o Anticristo precisamente no versículo 36: (1) O alcance da profecia (10:14) exige alguma referência escatológica, tornando assim possível esta divisão. (2) Embora toda a profecia de Daniel até 11:35 possa ser facilmente relacionada com os acontecimentos bem conhecidos da antiga história, essa correspondência não pode continuar além desse ponto. (3) O versículo 36 menciona um rei cujo período é ‘a indignação’, um termo técnico extraído da literatura profética de Israel, geralmente referindo-as aos acontecimentos escatológicos (por exemplo, Is. 26:20). (4) As predições inclusas correspondem com bastante precisão às profecias reconhecidas do Anticristo final (cons. II Ts. 2:4 e segs.; Ap. 13; 17). (5) Uma brecha literária natural aparece antes de Dn. 11:36. (6) O rei voluntarioso é um elemento novo, separado dos outros dois reinos cuja história está sendo examinada até o versículo 35. (7) De força decisiva é a ligação com a Grande Tribulação, a ressurreição dos mortos e as recompensas finais, etc. (12:1-3), fornecida pelas palavras “nesse tempo” (heb. ûbe’et hahî, 12:1). O tempo desses acontecimentos escatológicos é o tempo dos acontecimentos da parte final do capítulo 11”.

O comentário também pontua: “‘Deus de seus pais’ é uma designação familiar para o Senhor. ‘Desejo de mulheres’. Significado desconhecido. As interpretações variam desde ídolos femininos até paixões sexuais”.

A interpretação de Isaac Newton, como de costume, difere um pouco de todos esses intérpretes. Ele vê Roma entrando no cenário do capítulo 11 a partir do verso 30. Dali em diante, Rei do Norte e Rei do Sul passam a ser as duas divisões de Roma no ano 395 d.C. – o império romano do ocidente, sediado em Roma, e o do oriente, sediado em Constantinopla. Assim, o rei descrito dos versos 36-39 é o império romano ocidental, que se sobrepujou em relação ao seu poder eclesiástico católico. Sobre esse poder eclesiástico, Newton diz:

“Nos primeiros tempos do Cristianismo, os cristãos de cada cidade eram governados por um Concílio de Presbíteros, sob a presidência do Bispo da cidade. Bispos e Presbíteros não se intrometiam nos negócios de outra cidade, a não ser em mensagens e cartas de admoestação. Também, os Bispos de várias cidades não se reuniam em Concílio antes do reinado do Imperador Romano Cômodo, por isso que não podiam se reunir sem licença dos governadores Romanos das Províncias.

Mas nos dias de Cômodo, e com permissão dos governadores, começaram a se reunir em Concílios Provinciais: primeiramente na Ásia, em oposição a ‘heresia dos Catafrígios’ (sobre o que falaremos logo adiante); pouco a pouco, o fazendo em outros lugares e em várias ocasiões. Geralmente o Concílio era presidido pelo Bispo da Capital da província Romana: daí vem a autoridade dos Bispos metropolitanos sobre os outros Bispos da mesma província. Vem daí o motivo de, mais tarde, nos dias de Cipriano, ter-se o Bispo de Roma [Papa] chamado a si mesmo Bispo dos Bispos.

Logo que o Império se tornou cristão, o Imperador romano Constantino começou a convocar Concílios em todas as províncias. E, estabelecendo aquilo que devia ser considerado e os influenciando, por seu interesse e poder, tomaram o partido que quiseram.

Foi assim que, depois da divisão do Império Romano em Grego e Latino, aquele se tornou ‘o rei’, que, em matéria religiosa, ‘fará o que quiser’ e, legislando ‘se elevará e engrandecerá contra todo o deus’ e, por fim, no sétimo Concílio Geral, estabelecerá o culto das imagens e da alma dos mortos, chamados Maozins. O mesmo ‘rei’ estabeleceu como santidade a abstinência do casamento [entre o clero]”.

Expostas aqui as visões, vamos organizar as coisas. Há basicamente quatro teorias interpretativas sobre Daniel 11:36-39 em pauta: (1) o rei é Antíoco IV Epifânio; (2) o rei é o império romano antes de Cristo; (3) o rei é o Anticristo; (4) o rei é o império romano ocidental, sobretudo em seu aspecto eclesiástico. Vamos avaliá-las.

A primeira teoria é a mais frágil. O rei descrito não tem respeito pelos deuses dos seus pais, nem pelo desejo das mulheres – ou, em algumas versões, pelo deus desejado das mulheres. Pelo contexto, a ideia aqui é que o rei se arroga acima de todos os deuses e de todo o sentimento de obrigação ou necessidade ao que pensavam seus antepassados e as mulheres. Isso não parece se encaixar na história de Antíoco Epifânio, que era um rei comum, com devoção aos seus deuses e paixão pelas mulheres. O texto, no entanto, parece querer enfatizar que o rei arrogante descrito tem uma natureza muito diferente dos demais reis. Ademais, os versos 40-45 descrevem lutas e vitórias desse rei arrogante que não ocorreram na vida de Antíoco Epifânio. E, para completar, tanto o verso 40, quanto a sequência do texto no capítulo 12, demonstram que este rei estende seu poder por séculos até o tempo do fim. Logo, a hipótese de Antíoco é impossível.

A segunda teoria é razoável. Ela é coerente com a estrutura seguida por todos os capítulos proféticos de Daniel antes da sessão 10-11, pois desemboca em Roma. Vimos este fato nas últimas quatro postagens da série. Entretanto, o fato do capítulo 11 também levar ao tempo do fim (tal como outros capítulos anteriores) sugere que o rei não pode se restringir a Roma em sua fase pagã. Se Roma está descrita no capítulo 11, então ela deve se estender à fase católica/papal, o que implica sua existência até os dias de hoje e, provavelmente, até a volta de Jesus. A teoria defendida por Calvino, portanto, parece estar parcialmente correta.

A terceira teoria também é razoável. As evidências apontadas pelos intérpretes sobre o aspecto escatológico desse rei são claras e sólidas. Por outro lado, a maioria desses intérpretes tem encarado o Anticristo como um homem. Nesse aspecto, a visão de Calvino é mais arguta. De fato, “rei” não necessariamente é um homem. Pode ser um poder, um “reino”. No livro de Daniel isso é comum (Dn 2:36-40, 7:17,23, 8:20-23). Além do mais, temos visto que os capítulos 2, 7, 8 e 9 não falam sobre indivíduos, mas sobre reinos. Isso é um indício de que o rei de Daniel 11:36-39 também não é um indivíduo. E, sendo este o caso, Roma se encaixa perfeitamente aqui. Assim, a teoria do Anticristo também parece estar parcialmente correta, só necessitando se abrir à provável identidade corporativa do Anticristo.

Finalmente, a quarta teoria é a mais sólida. Ela é quase uma confluência entre a segunda e a terceira. Newton, seu defensor, vê em Roma o candidato que cumpre a profecia, enfatizando sua continuidade desde a fase pagã até a fase católica/papal. Aqui Roma se mostra inimigo da verdadeira doutrina e, por conseguinte, do povo de Deus desde o período judaico até ao período cristão, chegando ao fim dos tempos. Faz sentido.

Tempo do Fim e Profecias numéricas (Dn 12)

O capítulo 12 é a continuação do capítulo 11. O anjo ainda está falando com Daniel em sua visão iniciada no capítulo 10. Após narrar os problemas causados pelo rei arrogante, o anjo diz que Miguel se levanta (Dn 12:1). Calvino não interpreta este verso como tendo relação com o fim. Ele diz apenas:

“O anjo não mais relata especialmente ocorrências futuras, mas proclama que Deus é o general e guardião de sua Igreja, para preservá-la maravilhosamente no meio de muitas dificuldades e de terríveis comoções, bem como nas profundas trevas de desastres e de morte. Esse é o sentido dessa sentença”.

Embora o verso 2 relacione Miguel se levantando e o tempo de angústia no mundo com a ressurreição, e o verso 4 volte a falar no tempo do fim, Calvino interpreta todas as ocorrências da expressão “tempo do fim” em Daniel como significando um tempo fixo e determinado por Deus, não o fim escatológico.

Para os comentaristas da Nova Bíblia de Estudo de Genebra, parece haver dúvidas quanto a isso. Eles comentam que o tempo de angústia mencionado no verso 1 “é por vezes identificada com a ‘grande tribulação’ predita por Jesus (Mateus 24:21; Marcos 13:19)”. E informam nos comentários a Mateus 24 e Marcos 13 que a grande tribulação é uma referência à destruição de Jerusalém no ano 70 d.C., mas também à grande perseguição final. Lemos sobre Mateus 24:15-21:

“A destruição de Jerusalém foi um prenúncio do Juízo Final e por isso é um sinal da ira vindoura. Ergue-se como uma declaração única sobre o fim da velhice, e por isso é um sinal específico e exclusivamente importante”.

E sobre Marcos 13:4:

“A pergunta dos discípulos [‘Quando serão essas coisas?’ (Mc 13:4)] tem em vista a destruição prevista do templo. A resposta de Jesus parece incluir tanto este evento em particular e do tempo que leva para a vinda do Filho do Homem (v. 26; cf. Matt 24:3). Os acontecimentos em torno da destruição do templo parecem antecipar e tipificar aqueles associados com a Segunda Vinda”.

Para o Comentário Moody, a ideia de que Daniel 11:36 até 12:4 está falando do fim escatológico é clara. Sobre Daniel 11:40, por exemplo, lemos:

40. No tempo do fim. Cons. I Co. 15:24; Mt. 28:20; 13:39. O fim é o fim dos acontecimentos profetizados neste livro – a chegada do reino messiânico para substituir os outros. Daqui para o final das profecias de Daniel, foram focalizados acontecimentos rurais (cons. esp. 12:1, “nesse tempo”, etc.). O fim do Anticristo foi apresentado em outra parte (Ap. 19:11 e segs.; Is. 11:4; Sl. 2)”.

Mais adiante, sobre Daniel 12:1, explica: “‘Neste tempo’ (cons. coment. sobre Dn. 11:36). Exatamente quando se desenrolam os acontecimentos de 11:36-45”.

A Bíblia de Jerusalém, a Bíblia de Estudo Apologia e Isaac Newton não tecem comentários sobre esses versos. De qualquer modo, só há aqui duas perspectivas: ou o capítulo 12 não está falando sobre o fim escatológico ou está. A posição de que o fim é escatológico tem mais força, dado que, como temos visto nessa série, o livro de Daniel tem uma estrutura em que todos os eventos culminam no fim do mundo, quando Cristo volta. Além do mais, a menção à ressurreição e a um tempo de angústia dentre as nações aponta claramente para o fim escatológico.

Há outro ponto interessante aqui: no verso 4, Deus diz a Daniel para selar o livro até o tempo do fim. No mesmo verso, é dito que muitos iriam esquadrinhar o livro e o conhecimento aumentaria. A leitura sugere que as profecias de Daniel permaneceriam pouco compreensíveis até o tempo do fim, quando então as pessoas começariam a ganhar maior entendimento a respeito. O Comentário Moody concorda: “Os olhos das pessoas percorrerão a profecia e a compreensão aumentará. [O verso 4] Está se tratando da disposição do livro e o seu futuro”.

Continuando Daniel 12, nos versos 5-7 o profeta vê um anjo perguntando ao homem vestido de linho (citado em Daniel 10) quando ocorreriam os eventos citados nos versos 1-4. O homem responde que passaria primeiro “um tempo, dois tempos e metade de um tempo”, o mesmo período de tempo mencionado em Daniel 7:25. Vimos na parte 2 dessa série que Calvino interpretava o período como não equivalendo a “a certo número de meses ou dias, nem ainda a um único ano, mas a qualquer período cuja determinação só está no secreto conselho de Deus”. Ora, Calvino desenvolve essa mesma linha raciocínio ao comentar Daniel 12:5-7:

“Já expressei minha objeção à opinião dos que crêem que o propósito aqui é expressar um ano, dois anos e metade de um ano. Confesso que a passagem deve ser entendida como uma alusão à profanação do templo, a qual o profeta já havia discutido. A história claramente nos assegura que o templo não seria purificado até que se completasse o terceiro ano e sete ou oito meses depois. E possível que essa explicação se adeqúe a sua própria passagem; mas, com referência à doutrina aqui enunciada, seu significado é muito simples: tempo significa um longo período; tempos, um período mais longo ainda; e meio significa o fim ou o período final. A soma total é esta: muitos anos devem passar antes de Deus cumprir o que seu profeta declarara. Portanto, tempo significa um longo período; tempos, esse período duplicado; como se ele dissesse: Enquanto os filhos de Deus são mantidos em suspenso por tanto tempo sem obter uma resposta a suas perguntas, o tempo será prolongado; sim, inclusive duplicado.

Vemos, pois que um tempo não significa precisamente um ano, nem tempos significam dois anos, mas um período indefinido. Com respeito à metade de um tempo, isso é adicionado para o conforto dos santos, para evitar que desalentassem imaginando que a delonga era porque Deus não atenderia seu anseio. Assim descansam pacientemente até que esse ‘tempo’ e ‘tempos’ passassem. Além disso, o resultado é posto diante deles pelas palavras metade de um tempo, para impedi-los de cair em desespero pela excessiva exaustão. Admito a alusão a anos, mas as palavras não devem ser entendidas literalmente, mas metaforicamente, significando, como já afirmei, um período indefinido”.

Como já expliquei na parte 2, essa teoria é frágil, já que a expressão é detalhada demais para não significar um tempo calculável pelo homem. Além disso, é muito claro que os 3,5 tempos, quando entendidos como anos (conforme Dn 11:13 indica que deveria ser), equivalem exatamente aos 42 meses e aos 1260 dias que aparecem em Apocalipse (Ap 11:2-3, 12:6-14, 13:5). Então, o período é calculável.

Os comentaristas de Genebra apenas apontam o que já haviam dito sobre isso em Daniel 7:25, não acrescentando novos comentários. Nós já tratamos o tema na parte 2. Já o Comentário Moody apresenta notas adicionais. Lemos:

“A consumação terá lugar quando os três tempos e meio (3 anos e meio; 1.260 dias, 42 meses) tão freqüentemente mencionados nas profecias anteriores de Daniel tiverem se esgotado. Este versículo é base importante para sustentar a interpretação futurista não só de Dn. 9:27 (a septuagésima semana), mas das porções principais do Apocalipse. A última metade das semanas de anos é um aspecto importante na profecia, porque nela se realizam os principais acontecimentos da consumação”.

O Comentário acerta ao relacionar todas as três profecias numéricas como sendo o mesmo período, mas erra ao entender que esse período é literal e tem a ver com a última semana da profecia das 70 semanas. Explicamos isso na parte 4.

A Bíblia de Estudo Apologia, a Bíblia de Jerusalém e Isaac Newton não comentam esses versos do capítulo 12 em específico, o que indica que não teriam muito a dizer além do que disseram em relação a Daniel 7:25.

Na sequência, Daniel demonstra não ter entendido muito bem as relações entre todas as profecias numéricas e pergunta qual seria o fim dos eventos todos narrados do capítulo 10 até ali (Dn 12:8). A resposta dada a Daniel é uma espécie de repetição do conteúdo dos versos 3-4: o sentido permaneceria selado até o fim, quando o conhecimento dos justos se multiplicaria em relação às profecias (vs. 9-10). Finalmente, fechando a visão, o homem que respondia a Daniel afirma:

“Depois do tempo em que o sacrifício diário for tirado, e posta a abominação desoladora, haverá ainda mil duzentos e noventa dias. Bem-aventurado o que espera e chega até mil trezentos e trinta e cinco dias. Tu, porém, segue o teu caminho até ao fim; pois descansarás e, ao fim dos dias, te levantarás para receber a tua herança” (vs. 11-13).

Duas novas profecias numéricas são dadas ao profeta Daniel sem nenhuma explicação a respeito. O que os comentaristas dizem a respeito? Calvino reconhece que a passagem é obscura. No entanto, arrisca uma interpretação de que os 1290 dias se iniciariam a partir de quando “Cristo, com seu advento, aboliria as sombras da lei, fazendo assim toda a oferenda de sacrifícios a Deus totalmente sem valor”. Seria uma espécie de tempo de paciência de Deus com Israel. Depois o evangelho seria pregado por todo o mundo.

Calvino se baseia, para tanto, na profecia das setenta semanas. Os 1290 dias seriam a metade da última semana mencionada em Daniel 9:27 que, conforme já vimos na parte 4, era entendida por Calvino como se findando nos anos posteriores a morte de Cristo, sem intervalo. No entanto, Calvino não explica porque Daniel 12:11 usa 1290 dias em vez de 1260 dias para 3 anos e meio. O intérprete também traça uma relação entre os 1290 dias e os 3,5 tempos, dizendo o seguinte:

“Esses dias perfazem três anos e meio. Não hesito em entender o anjo falando em termos metafóricos. Visto que ele anteriormente expressara um ano, ou dois anos, e a metade de um ano, por uma longa duração de tempo e um feliz resultado, então agora expressa 1290 dias. E por qual razão? Para mostrar-nos o que deve acontecer quando as ansiedades e trabalhos nos oprimirem. […] embora esse tempo pudesse parecer incomensuravelmente prolongado, e pudesse assustar-nos com sua duração, e prostrar completamente os ânimos dos santos, todavia chegarão ao fim. O número de dias, pois, é de 1290, contudo não há razão para os filhos de Deus se desesperarem em conseqüência desse número, porque deverão sempre lembrar desse princípio: se todas as aflições nos aguardam por um tempo e tempos, a metade de um tempo virá em seguida”.

Em relação aos 1335 dias, Calvino diz:

“Não me disponho a dedicar-me a cálculos numéricos, e os que explicam esta passagem usando de extrema sutileza apenas se divertem com suas próprias especulações e prejudicam a autoridade da profecia”.

Estranhamente, para Calvino, tentar ser exato na aplicação numérica da profecia é apenas uma questão de diversão. Mais adiante, ele diz que não se pode separar os 1335 dias dos 1290 dias e conclui:

“É como se o anjo tivesse dito: embora metade do tempo fosse prorrogada, todavia os fiéis devem constantemente persistir na esperança do livramento. Pois ele acrescenta cerca de dois meses, ou um mês e meio, ou mais ou menos isso”.

A interpretação de João Calvino é extremamente confusa. Ele não respeita o contexto temático imediato de Daniel 12 e do final de Daniel 11. As passagens falam sobre eventos do tempo do fim, mencionando profecias seladas até o fim, tempo de angustia entre as nações, um despertar para as profecias de Daniel entre os sábios e puros, um período de tempo relacionado (segundo Daniel 7:25) à perseguição do povo de Deus e a ressurreição dos mortos. Calvino, no entanto, destaca os versos de tudo isso e cria uma interpretação baseada em pontos que não se encontram no contexto. Além do mais, ele alegoriza as profecias numéricas e desdenha da exatidão matemática, o que é até estranho, já que Calvino costumava a ser muito fiel à interpretação mais literal e natural possível dos textos bíblicos.

Os comentaristas da Nova Bíblia de Estudo de Genebra não fazem melhor. Sobre os 1290 dias, se limitam a dizer: “A importância desses prazos é obscura. Três anos e meio é de 1260 dias de um ano de 360 dias, ou 1.278 dias de um ano de 365 dias”. Não há comentários sobre os 1335 dias.

A Bíblia de Jerusalém também comenta que a questão é obscura. Afirma:

“A diferença de cifras entre [Dn] 8:14 (mil cento e cinquenta [a Bíblia de Jerusalém interpreta as 2300 tardes e manhãs como 1150 dias, como vimos na parte 3]) e, neste cap., do v. 11 (mil duzentos e noventa) e do v. 12 (mil trezentos e trinta e cinco) continua sem explicação”.

Isaac Newton sequer chega a comentar os versos. Já a Bíblia de Estudo Apologia arrisca uma interpretação, embora reconheça que esta é apenas uma especulação. Lemos:

“Os comentaristas que relacionam o livro de Daniel aos eventos da perseguição feita por Antíoco IV Epifânio afirmam que os 1290 e os 1335 dias eram ajustes ao tempo anteriores ao predito com equívoco pelo autor, até o fim dos 1260 dias (cf. v. 7 com Ap 12:6,14). Talvez os dias extras representem o tempo em que o Senhor irá julgar as nações e inaugurar oficialmente o seu reino. Os que alcançam os 1335 dias são ‘bem aventurados’ porque entrarão no maior período da história humana – a era messiânica” (Ênfase minha).

Eu não sei o que o autor quer dizer com Era Messiânica. Talvez ele seja um daqueles que defenda que o milênio mencionado em Apocalipse 20 será na Terra e Cristo irá reinar literalmente aqui. De qualquer forma, fica claro que o autor não tem certeza e que sua interpretação não tem base nenhuma no próprio livro de Daniel. Ela é desconectada de todos os temas tratados minuciosamente no livro.

O Comentário Moody também não é muito assertivo. Afirma sobre os versos 11 e 12:

11. Este versículo leva a profecia do meio da septuagésima semana de Daniel 9 até os primeiros trinta dias do Milênio que vem a seguir, talvez o fim de algum período de ‘operação de limpeza’.

12. Isto leva a profecia sessenta e cinco dias além do fim da ‘semana’. Será que atinge o pleno estabelecimento do reinado do Messias depois de sessenta e cinco dias de operação preliminar inicial? O Milênio, se for uma verdadeira administração do governo celeste na terra de maneira visível, exigirá tempo para o processo administrativo começar a operar”.

Aparentemente, a visão do comentarista da Bíblia de Estudo Apologia é a mesma da visão do intérprete do Comentário Moody: um milênio terreno com um governo de Jesus. Para além do problema já citado de essa ideia não ter base no próprio livro de
Daniel (parecendo, portanto, fora de contexto), é estranho pensar que o milênio servirá para estabelecer um governo de moldes terrenos. Que Jesus irá governar para sempre, não há dúvidas. Mas se é para sempre, fica claro que o milênio é delimitado por alguma razão importante para finalização do plano de redenção. E não parece plausível que essa razão necessite ter relação com um governo de moldes terrenos. Mas esse tema do milênio é assunto para outro texto.

O que parece claro ao fim dessa exposição das interpretações sobre o capítulo 12 é que nenhuma delas é satisfatória. Todas são nebulosas e inconsistentes. E alguns intérpretes reconhecem não saber ao certo o que as duas profecias numéricas finais significam.

Há alguma maneira de interpretar consistentemente este capítulo? Sim. Como vimos, as evidências de que o capítulo 12 fala sobre o tempo do fim escatológico é forte. Pelas interpretações feitas dos capítulos 2, 7, 8 e 9, sabemos que o tempo do fim se inicia após o fim dos 1260 dias (que são anos) e por volta do fim das 2300 tardes e manhãs (que também são anos). Em outras palavras, o tempo do fim se inicia em algum ponto entre os anos de 1798 e 1844.

Curiosamente, o despertar para o livro de Daniel se inicia um pouco antes desse período, ultrapassando especialmente os séculos 18 e 19. O livro de Isaac Newton sobre Daniel e Apocalipse, por exemplo, é de mais ou menos 1733. As profecias estavam dos 1260 dias e das 2300 tardes e manhãs estavam bem próximas de se cumprir, então, é natural que Deus motivasse uma efervescência sobre o tema. O historicismo estava em alta por essa época e grande parte dos protestantes cria que a posição de Papa era o Anticristo, incluindo Calvino, como veremos em postagem futura. Tudo isso parece bater com o que prediz os primeiros versos de Daniel 12:1-10.

Uma vez que os 3,5 tempos dos versos 5-7 se referem aos 1260 anos, então devemos entender que os 1290 dias e os 1335 dias também possuem alguma relação com essa profecia. Logo, (1) também devem ser entendidos como anos e (2) devem ter início ou final relacionados aos 1260 anos.

Muito bem, começando pelos 1290 anos, se ele tiver início em 538 também, tem final em 1828. Não parece ter havido nada de profeticamente especial neste ano. Entretanto, se os 1290 anos terminam em 1798, começaram em 508. E 508 foi o ano em que o rei francês Clóvis venceu alguns exércitos bárbaros para o papado, dando o pontapé inicial às relações entre o papado e os reinos temporais, e também às destruições dos inimigos do papado – as quais culminariam em 538, com o imperador Justiniano terminando o serviço. Então, o período parece se encaixar bem.

Quanto aos 1335 dias, seguindo o contexto dos 1290 dias, eles devem se iniciar no ano 508. Se este for o caso, o resultado nos leva exatamente ao ano 1843, um ano antes de começar o ano da última profecia: a das 2300 tardes e manhãs. Aparentemente, o texto está dizendo que é feliz aquele que chega a esse ano, pois é o ano derradeiro de espera para o ano em que a purificação do Santuário Celeste se iniciará. A sincronia das datas e os eventos profeticamente importantes no fim delas torna essa interpretação bastante bíblica e plausível.

Resumo e Conclusão

Fizemos uma comparação de interpretações em relação aos capítulos 10, 11 e 12, que formam uma unidade, pois eles fazem parte de uma mesma visão. Em relação ao capítulo 10, analisamos a questão da identidade de Miguel. Duas hipóteses principais foram observadas: a de que Miguel é um anjo de alta patente criado por Deus e a de que Miguel é Cristo pré-encarnado. A segunda hipótese (defendida por Calvino, inclusive) se mostrou mais coerente com o fato de que só Yahweh representa perfeitamente a Yahweh.

No capítulo 11, focamos nas divergências de interpretação quanto aos versos 36-45. As teorias levantadas foram de que o rei arrogante mencionado ali era ou (1) Antíoco IV Epifânio, ou (2) Roma antes de Cristo, ou (3) o Anticristo, ou (4) Roma em suas fases pagã e católica/papal. Concluímos que a quarta hipótese é mais coerente biblicamente e que ela é quase uma confluência entre as hipóteses 2 e 3, de modo que as três últimas estão parcialmente corretas.

No capítulo 12, avaliamos se o contexto fala sobre o tempo do fim escatológico e procuramos analisar as interpretações sobre as duas últimas profecias numéricas do livro de Daniel. Concluímos que o contexto versa sobre o tempo do fim escatológico e que a melhor interpretação das duas profecias numéricas finais é que elas representam anos e possuem relações com as profecias numéricas mencionadas em Daniel 7 e 8.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem entendido que Miguel é Cristo pré-encarnado, tal como Calvino entendia. Ela também sustenta que o rei arrogante de Daniel 11:36-45 é Roma em suas fases pagã e católica/papal, e que Roma é o Anticristo. Finalmente, entende que o capítulo 12 de Daniel é sobre o tempo do fim escatológico e que os 1290 e 1335 dias são anos e se relacionam aos já estudados períodos de 1260 dias e 2300 tardes e manhãs (estes também representando anos).

Não mencionei durante o texto, por não ser o foco, mas há interpretações diferentes a respeito dos versos 5-35 dentro da IASD. C. Mervyn Maxell, por exemplo, entende que até o verso 13, o tema são as lutas entre Egito e Síria. Do verso 14 em diante, Roma entra em cena. Já Jacques Doukhan sustenta que desde o verso 5 o assunto é a luta entre Roma (Rei do Norte) e o Secularismo/Ateísmo (Rei do Sul). Há teólogos que entendem ainda que o Islamismo entra dos versos 40-45 (representado pelo Rei do Sul). Todos esses concordam, no entanto, que dos versos 36-45 o rei arrogante (que é o Rei do Norte) é uma representação de Roma. As divergências são em pontos periféricos e não mudam o âmago do entendimento geral adventista.

Com essa postagem, fechamos as comparações escatológicas no livro de Daniel. No próximo texto, analisaremos as diferentes interpretações a respeito de Apocalipse, tendo como base muito do que vimos nesses primeiros cinco textos. Afinal, os livros de Daniel e Apocalipse estão intimamente ligados.