Por Davi Caldas
Vimos nas últimas postagens os argumentos cosmológico (parte 1 e parte 2) e o teleológico. O primeiro nos mostra a necessidade lógica de uma causa transcendente para o universo. O segundo observa a improbabilidade do surgimento de mecanismos complexos, estáveis, com finalidades e funcionais no universo, sem uma inteligência que os tenha conduzido propositalmente para tal estado.
´Em outras palavras, até aqui, através do raciocínio lógico e do respaldo de dados científicos, podemos constatar que existe um agente causador do universo (e dos seres que nele existem), atemporal, aespacial, imaterial, pessoal e inteligente.
O argumento que vamos estudar hoje, o argumento moral, não só ratifica que há um agente exterior ao universo e logicamente necessário ao mesmo, mas atribui a esse agente características que o aproximam um pouquinho mais do que as religiões chamam de Deus. Vamos vê-lo?
Introdução
Basicamente ele se propõe a dizer o seguinte:
(1) Se existem valores morais objetivos, existe uma fonte moral transcendente;
(2) Existem valores morais objetivos;
(3) Logo, há uma fonte moral transcendente.
Antes de começar a destrinchar o argumento, vamos definir os significados de “valores morais” e “valores morais objetivos” nessa postagem. Por “valores morais” queremos dizer senso do que é dever ou o entendimento do que é correto. Assim, julgamentos como: bem e mal, justo e injusto, certo e errado; atitudes como: dar água ao sedento, ajudar um acidentado, salvar uma vida; proibições como: não matar, não roubar, não mentir, não machucar; e também os valores atribuídos a uma vida, a um sorriso ou a uma lágrima, fazem parte do que definimos, nesta postagem, como valores morais.
Já, por “valores morais objetivos”, queremos dizer valores que não se baseiam em fatores subjetivos (isto é, particulares, individuais, relativos), mas sim em fatores objetivos (isto é, absolutos, imutáveis).
Agora, vamos destrinchar o argumento e responder às prováveis questões que irão surgir aqui.
Destrinchando o argumento: Premissa 1
De onde surgem os valores morais? Só há duas opções: ou eles surgem a partir de alguma fonte mutável ou de alguma fonte imutável. Há várias fontes mutáveis como tempo, espaço, cultura, opinião pessoal, sentimentos, pacto social e biologia. Se os valores morais provêm de qualquer uma dessas fontes, eles não são objetivos, mas subjetivos. Em outras palavras, eles podem mudar de acordo com variações que ocorram nessas fontes, já que as fontes são mutáveis. Assim, a natureza deles passa a ser subjetiva, isto é, pessoal. Não há nada transcendente e imutável que faça com esses valores sejam objetivamente válidos, uma inerência da realidade.
Para tornar mais claro: os cálculos matemáticos são uma inerência da realidade. Eles se baseiam na lógica, que é imutável. Desta forma, a afirmação 1 + 1 = 2 é objetiva e não subjetiva. Esta assertiva não depende de tempo, espaço, cultura, opinião pessoal, sentimentos, convenção social ou biologia. É uma verdade lógica, imutável, absoluta.
Disso se segue claramente que para os valores morais serem objetivos, tal como as equações matemáticas, eles precisam ser provenientes não de fontes mutáveis, mas de alguma fonte imutável que transcenda todas as fontes mutáveis mencionadas acima. Não se pode dizer, por exemplo, que matar um ser humano inocente ou violentar uma moça é algo objetivamente errado se este valor moral tiver como fonte a cultura, por exemplo. Porque em uma cultura esses dois atos podem ser errados e em outra não. Ademais, eu posso forjar a minha própria cultura e tentar disseminá-la. Assim, a questão se torna subjetiva.
Da mesma forma, esses dois atos não podem ser objetivamente errados se esse julgamento tiver como fonte a biologia. Alguns podem ter nascido com um instinto que julga isso errado. Mas outros podem nascer com um instinto que crê que isso é certo. Imagine, por exemplo, uma ilha em que todos nasceram psicopatas e, por isso, creem que matar por prazer é moralmente correto. Neste caso, realmente seria correto. Mas só enquanto os nascidos da ilha fossem psicopatas. Em outras palavras, a biologia é tão mutável quanto a cultura, o tempo, o lugar ou as opiniões pessoais.
Valores morais baseados em pacto social também não se tornam objetivos. O fato de uma sociedade julgar ser conveniente entender assassinato e estupro como atitudes moralmente erradas não faz dessas atitudes realmente erradas. Apenas mostra que a sociedade achou conveniente estabelecer assim. Uma sociedade também poderia achar conveniente que todos os seus membros andassem de azul. Isso não prova que andar de azul seja uma atitude objetivamente certa e que burlar isso seja um erro moral objetivo.
Assim sendo, a primeira premissa está correta. Se existem valores morais objetivos, eles precisam estar baseados em uma fonte moral transcendente, em uma fonte que está além de todos esses fatores mutáveis, o que justifica sua supremacia sobre todos os fatores. A equação 1 + 1 = 2 só está além do pacto social, por exemplo, porque não se baseia nele, mas na lógica. A equação é válida não porque a sociedade achou conveniente, mas porque ela é válida objetivamente. É uma inerência da realidade. E ainda que uma determinada sociedade, por conveniência, prefira dizer que 1 + 1 = 3, isso não vai mudar a equação real. O mesmo em relação à valores. Se eles são objetivos, se baseiam em uma fonte transcendente.
Destrinchando o argumento: Premissa 2
Mas será que realmente existem valores objetivos? Bom, embora isso não possa ser provado de maneira cabal, há indícios de que sim. Em todos os tempos e lugares, as pessoas sempre entenderam certas regras e valores como objetivos e não como mera questão de opinião ou como uma ilusão conveniente que a sociedade adotou. Por mais que se possa apontar diferenças entre os códigos éticos de cada sociedade ao longo do tempo, todas elas tiveram um fundo comum. Isso demonstra que, apesar dos desvios de diversos indivíduos e das diferenças de tempo, lugar, cultura, opiniões e estrutura biológica, uma espécie de moral geral tem se mantido mais ou menos uniforme desde os primórdios da humanidade.
Relativistas morais insistem que não existem valores absolutos, mas sim, pontos de vista diferentes. “Tudo é relativo”. Já ouvimos muito essa frase, não é? O problema é que os próprios relativistas valorizam o direito de fazer esta afirmação, por exemplo. Eles achariam errado e injusto que alguém reprimisse sua liberdade de expressão, o que não faz sentido se valores morais objetivos não existirem. Ademais, é muito pouco provável que um relativista seja relativista com relação ao estuprador de sua filha ou a um assaltante que matou toda a sua família, dizendo: “Não, não é errado. É apenas uma questão de opinião. Eles gostam de estuprar, roubar e matar. Eu não gosto”. O relativista tem noção de certo e errado, toma posições contra ou a favor de algo, defende e quer impor, tem opiniões e quer passá-las adiante. Mas se tudo é relativo e todo o valor é só questão de opinião, posicionar-se contra ou a favor de qualquer coisa não tem lógica.
Isso nos faz lembrar uma história interessante descrita no livro “Não tenho fé suficiente para ser ateu”, onde um aluno ateu faz um trabalho sobre relativismo, argumentando de maneira convincente que não existem verdades e valores absolutos, mas apenas opiniões diferentes.
“Eu gosto de chocolate e você de baunilha”, sustentava o aluno. O trabalho era digno de nota máxima, entregue na data certa, encapado e dentro dos moldes pedidos pelo professor. No entanto, a correção do trabalho surpreendeu o estudante. Bem grande, na capa, o professor colocou: “Nota F. Não gosto de capas azuis”. Obviamente o aluno vai reclamar, afirmando que aquilo era injusto, errado, antiético, imoral, que seu trabalho merecia uma nota A e etc. Contudo, o professor se defende com o próprio argumento do aluno, sustentando que não existem verdades e valores objetivos; é só questão de opinião.
Então, aparentemente existe um padrão objetivo de atitudes a serem seguidas pelo homem e que nos possibilita julgar o valor das coisas e saber o que é certo e o que é errado. São regras gerais que por algum motivo todo o ser humano deve seguir e que por algum motivo a grande maioria das pessoas concorda com a sua existência, consciente ou inconscientemente (ainda que se julgue um relativista). Se por um lado não podemos provar cabalmente a objetividade desses valores, por outro lado, também não há nenhuma razão para não crer neles. O fato de poucos estarem dispostos a realmente viverem como se não houvesse nenhum valor objetivo é um indício de que eles existem e não fomos projetados para negligenciar a todos.
Conclusão do argumento
Uma vez que se aceite as duas premissas (e não há razão para não aceitá-las), a conclusão é inevitável. Há uma fonte transcendente para os valores morais objetivos. Ela sobrepuja tempo, espaço, cultura, opiniões pessoais, sentimentos, convenções sociais e biologia. Assim, quando consideramos que a vida humana tem valor, ou que ajudar o fraco é algo bom, ou que a injustiça é algo ruim, ou que matar inocentes e violentar moças é errado, ou que devolver o dinheiro de alguém que perdeu é certo, estamos julgando com base em uma fonte moral transcendente. São julgamentos objetivos. Quando dizemos que o holocausto nazista foi algo terrível do ponto de vista moral ou que agressões movidas por preconceito (como a homossexuais, negros e mulheres) são inadmissíveis, estamos julgando com base em uma fonte moral transcendente. São julgamentos objetivos. Não se trata de opinião e nenhum fator vai mudar a realidade desses julgamentos.
Agora, repare: esse argumento conduz exatamente ao mesmo tipo de conclusão dos argumentos cosmológico e teleológico. A fonte da moral objetiva precisa transcender tempo, espaço, matéria e energia, tal como a causa primária do universo e o projetista de toda a natureza. Essa fonte moral também precisa ser pessoal, já que moralidade é um atributo pessoal. Pedras, terra, água, fogo não são entes morais. Movimentos mecânicos e aleatórios de átomos não possuem moralidade. Este é um atributo pertencente a seres pessoais. Logo, conclui-se que a fonte transcendente da moral é pessoal e sua natureza moral é imutável. Trata-se de um ser plena e intrinsecamente bom e justo.
Tradicionalmente monoteístas chamam este ser plenamente moral de Deus e entendem que Ele é o mesmo ser que projetou e causou o universo. Nada mais lógico. Um ser pessoal que tenha projetado e causado o universo, estando Ele além de tempo, espaço, matéria e energia, provavelmente é um ser onipotente. Uma vez que não pode haver mais que um ser onipotente (caso contrário, não haveria onipotência), então a fonte moral transcendente do universo só pode ser o mesmo ser que o projetou e causou. Até o momento, portanto, esses argumentos lógicos concluem exatamente aquilo que religiosos monoteístas têm dito há milênios.
Na próxima postagem, veremos algumas tentativas de refutação ao argumento moral. E na postagem subsequente, estudaremos sobre o argumento da razão.
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Posts da Série:
Parte 1: Argumento Cosmológico
Parte 3: Argumento Teleológico
janeiro 23, 2018 at 6:51 am
Uma crítica:
No argumento cosmologico e teleologico estava se tratando a cerca da criação do universo.
No primeiro argumento, o tema central era a causa, e no segundo, era a complexidade. Querendo ou não, os dois envolviam a criação de seres pessoais, como os seres humanos.
Já no caso do argumento moral está se tratando da fonte transcendente da moralidade objetiva. Está fonte não criou a moralidade, muito menos os seres morais, portanto não há razão pra afirmar que está fonte precise necessariamente ser um ser pessoal.
Ora, a estrutura mental humana que serve de plano de fundo para o pensamento e a argumentação, é a razão.
1- Através da razão pode-se chegar em princípios morais.
2- A razão é imutável.
3- Portanto a razão é uma fonte transcendente de princípios morais.
Conclusão, as premissas do ser argumento não levam, necessariamente a existência de uma fonte transcendente pessoal, logo, ele não é útil para fazer uma defesa da existência de Deus.
Sou adventista, mas não posso me omitir ao ver uma conclusão errada sendo tomada.
No mais, que Deus continue abençoando o blog e que artigos cada vez melhores sejam produzidos.
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janeiro 23, 2018 at 11:05 am
Caro Ryan,
Agradecemos pelo seu comentário. Bom, cremos que seu raciocínio está equivocado. Vamos analisar.
“1- Através da razão pode-se chegar em princípios morais”.
Não exatamente. Através da razão é possível formular regras de conduta. Mas não necessariamente essas regras possuem valor objetivo. Se elas tiverem origem apenas em nossa razão, não passam de conveniência (ou inconveniência). Outra forma de entender isso é lembrando que a mesma razão que pode formular regras de conduta, pode formular modos de burlar essas regras. A mesma razão que pode criar o que hoje chamamos de bem, também pode maquinar maneiras de individuais de se beneficiar passando por cima dos outros, e de ainda fazer isso sem ninguém perceber. Se os dois tipos de conduta podem ser formulados igualmente pela razão, com base em que rechaçamos uma e louvamos a outra? A não ser que haja uma base externa à nossa própria razão, não há motivo para distinção, a não ser mera conveniência. Mas conveniência é diferente de moralidade objetiva. É muito diferente não matar porque não é conveniente e não matar porque é objetivamente errado.
Qualquer resposta que você tentar dar para o problema acima acabará por apelar à moral como um elemento externo à nossa razão. Exemplo: “Não, as duas atitudes são distintas porque não se pode fazer ao próximo o que você não gostaria que fizesse a você”. É? Por quê? Quem inventou essa regra? Qual a base dela? E outra: isso já é uma regra moral. Ou seja, se está usando uma regra moral para validar regras morais. Raciocínio circular. Percebe?
Então, a razão por si só não pode validar o que hoje entendemos como moral. Ela não pode sozinha distinguir objetivamente o que entendemos hoje como certo ou errado, pois as duas atitudes provém da razão igualmente. O que confere objetividade à moral é sua origem. Ela precisa estar além de nossa razão e de qualquer outra coisa criada. Por isso ela aponta para uma fonte moral transcendente.
“2- A razão é imutável”.
Há duas questões a serem exploradas aqui. A primeira é que a crença na imutabilidade da razão depende inteiramente de uma origem transcendente e racional para a própria razão. Do contrário, nossos processos mentais não são confiáveis e, assim, o que entendemos como racional pode não ser. Ora, se a razão só é imutável na hipótese de haver uma fonte racional transcendente, da mesma forma a moral só é objetiva se houver uma fonte moral transcendente. Em suma, a imutabilidade de nossa razão e moral dependem diretamente de uma origem imutável anterior. Logo, nossa razão não pode ser usada, à priori, como fonte validadora da moral objetiva, nem da própria razão.
A segunda é que ainda se considerarmos a razão imutável per se, isso não leva à conclusão de que algumas coisas são objetivamente morais e outras não. Como vimos, pode-se usar a razão para fazer qualquer ato. E se não há Deus, alguém que a usa para benefício próprio, a fim de ter o máximo de alegria possível em sua vida, está sendo bastante racional em certo sentido. Por que então estaria errado? A nossa razão aqui não é suficiente. Por mais que a moral seja apreendida pela razão, ela não é a razão.
“3- Portanto a razão é uma fonte transcendente de princípios morais”.
Estando suas duas premissas erradas, a conclusão obviamente está errada. Não seria nem necessário analisá-lo. Mas achamos interessante analisar porque há um caso sutil de “non sequitor” nela. É dito que a razão é uma fonte transcendente de valores morais. Mas seu argumento foi construído não em cima da transcendentalidade, mas da imutabilidade. Embora tudo o que seja transcendental é imutável, nem tudo o que é imutável é transcendental. A razão humana é imutável, mas é criada. Há algo que a transcende que é a razão de Deus. Se você usou o termo para se referir à racionalidade, à razão geral, à lógica, então está inevitavelmente se referindo à razão maior, que é a de Deus, e é de onde todas as demais descendem. Assim sendo, seu argumento se desmonta, pois torna-se imprescindível achar em Deus a base da razão e, por consequência, a base dos princípios morais. Se, por outro lado, nossa razão não descende de Deus, tampouco nossa moral (como pensam os ateus), não há meios para validar nenhuma das duas coisas, o que leva tudo para o campo da conveniência, da cultura, do subjetivismo humano.
Para terminar, gostaríamos de analisar sua afirmação inicial:
“Já no caso do argumento moral está se tratando da fonte transcendente da moralidade objetiva. Está fonte não criou a moralidade, muito menos os seres morais, portanto não há razão pra afirmar que está fonte precise necessariamente ser um ser pessoal”.
O argumento moral constata que se a moral é objetiva, ela precisa de uma fonte que vá além de tudo, o que torna a moral um dado da própria realidade geral. Para isso, ela precisa anteceder a própria criação do universo. Por isso, transcendente. E ela precisa ser pessoal porque um ente não pessoal não pode possuir o atributo da moralidade. Um computador, por exemplo, não possui moral. O máximo que se pode fazer é uma pessoa (ser moral) criar um programa que dê ao computador capacidade de rechaçar alguns atos (cria-se assim uma proto-moralidade). Ainda assim, isso só é possível porque uma fonte moral e racional (e, portanto, pessoal) que transcende o computador resolveu criar esse programa. Da mesma forma, nós só podemos ser morais e racionais porque uma fonte pessoal nos projetou assim e porque esses atributos lhe são inerentes, sendo assim dados da própria realidade.
Abraços,
Equipe Reação Adventista.
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