Por Davi Caldas

Idolatria política não é só pecado. É uma coisa bastante irritante. Eis uma das muitas coisas irritantes desse pecado: o pensamento binário. Ele funciona do seguinte modo: se eu escrever hoje um texto criticando a idolatria que muitos tem em relação a Bolsonaro, tratando-o como incriticável (“se criticar, o PT volta!”), infalível e salvador da pátria, serei chamado pelos idólatras políticos de petista, de socialista, de esquerdista, etc. E se eu escrever hoje um texto criticando o socialismo, o marxismo ou a idolatria que muitos tem em relação a políticos de esquerda, serei chamado pelos idólatras políticos de bolsonarista, olavista, bolsolavista, direitista, neoliberal, fascista, nazista, etc.

O leitor percebe? Não há a menor chance de fazer uma crítica sem que automaticamente você não seja taxado, pelos idólatras políticos, como defensor do extremo oposto. É como se só existissem sempre dois lados. Se você critica um, inevitavelmente faz parte do outro. E claro: você precisa concordar totalmente com um lado. Para idólatras políticos, você precisa comprar 100% de um um lado e criticar 100% do outro lado

O binarismo, curiosamente, também atinge muitos daqueles que, desejando se erguer acima dos extremos, taxam todo mundo como pertencendo a um dos lados. Ou seja, se você vai discutir com um desses, ele arrumará uma forma de enquadrar você ou como bolsonarista-olavista-fascista-neoliberal ou como petista-socialista-comunista. Afinal, se você não for enquadrado em um desses lados, o sujeito não poderá se erguer sobre você como um paladino da moral que não se curva a políticos. No fim das contas, esse sujeito também é um idólatra e não percebe. Ele já não consegue enxergar o mundo para além do binarismo e quer tirar proveito disso: todos precisam ser extremistas para que ele possa ser o único sensato. É a idolatria do ego.

Experimentei um exemplo desse não tem muito tempo. Leandro Quadros compartilhou um texto meu (já relativamente antigo) onde explico porque um cristão não deveria ser socialista. Em um dos comentários, um homem de sobrenome Lopes dizia o seguinte:

“Ta… legal… mas o que a crítica ao socialismo tem que ver com nossa atual situação meu amigo? Olha a porcaria de governo que estamos tendo que suportar e tu vem criticar o socialismo? Tem algo errado aí não?

Pessoas ‘influentes’ da nossa denominaçao, como você, precisam parar de passar pano pra governos péssimos como o que estamos vivenciando. Se acha que não tem o que criticar nesse caso então porque vocês não se mantem focados no que realmente deveria importar, o Evangelho? Quando vocês fazem isso, se desviam do Caminho e levam outros a se desviarem junto. Foco no que realmente importa, é o que falta à nossa liderança e a vocês, ‘influenciadores’”.

Note o raciocínio de Lopes: se você afirma que socialismo não se coaduna com a fé cristã, isso significa que você está “passando pano” para o governo atual (que não é socialista). Na cabeça ideologizada de Lopes, só existem dois pólos (ao menos para as pessoas que ele critica): socialismo e bolsonarismo. Se você critica o socialismo, então é bolsonarista. Talvez a regra só não se aplique a ele mesmo. Não sei. Desconheço a posição política de Lopes.

Repare ainda que Lopes confunde “crítica geral a uma ideologia” com “crítica específica a um governo atual”. Ele queria que Leandro Quadros usasse sua página teológica para tecer análises políticas contrárias ao governo atual. Posso até estar errado, mas nunca vi Leandro Quadros fazer isso quando os governos Temer, Dilma ou Lula estavam no poder. Por que, então, ele faria em relação ao Bolsonaro? Do mesmo modo, o Reação Adventista nunca criticou os governos Dilma e Temer quando estes ainda estavam no poder. Por que faríamos diferente em relação ao governo Bolsonaro? Ora, se Lopes quer críticas específicas a governos atuais, que vá seguir páginas de análise política.

Diferentemente de criticar governos atuais, no entanto, a crítica à ideologias (e idolatria política!) se faz necessária à páginas teológicas. Por quê? Porque governos passam, ideologias ficam. Ideologias impregnam o evangelho, deturpando a Bíblia e a nossa visão de mundo. Então, sim, o socialismo deve ser criticado. Assim como o fascismo e o nazismo. Lopes não entende isso. Para ele, devemos misturar evangelho com política a tal ponto que páginas teológicas se tornem páginas de análise e crítica específica de governos atuais. Ele quer que saiamos do campo do ataque a (má) ideias gerais para o ataque a personalidades contemporâneas e medidas governamentais. E adivinha? Se não aderimos a esse alto grau de politização, somos o que? Bolsonaristas.

Respondi mais ou menos essas coisas ao Sr. Lopes. E então ele me veio com uma “imposição” e uma acusação. A “imposição” era que eu deveria escrever também sobre “os contras do capitalismo e como um cristão não pode se identificar com essa visão também”. E a acusação é que o Reação Adventista já fez posts defendendo o Bolsonaro e apagou.

Em relação à imposição, não vejo muito sentido em escrever sobre os “contras do capitalismo”, uma vez que não há unanimidade sobre o que é capitalismo. Para os marxistas, capitalismo é um sistema econômico perverso, baseado em propriedade privada, no qual burgueses exploram proletários. Esse sistema seria responsável por praticamente todas as injustiças que temos no mundo. Assim, na visão marxista, o capitalismo precisa ser derrubado a partir da revolução proletária para que o mundo seja justo.

Sem dúvida, essa visão está em confronto com a Bíblia, já que ela não coloca a propriedade privada, nem a atividade comercial como males em si mesmos ou raízes de todas as injustiças. Para a Bíblia, todas as injustiças são resultado do pecado e a redenção está apenas em Cristo. Ou seja, eu não posso fazer um texto criticando o capitalismo tendo por base a definição marxista do que é capitalismo. Se é isso que Lopes quer, então ele está assumindo ser marxista e desejar uma interpretação marxista do evangelho.

Outra interpretação do capitalismo é a de que ele é um sistema neutro, baseado em propriedade privada, industrialização e certo grau de liberdade econômica. Ora, mas se ele é um sistema neutro, obviamente podem existir vários tipos de capitalismo. Alguém mais de centro ou esquerda pode defender um capitalismo social-democrata, que é uma terceira via entre o liberalismo e o socialismo. Um indivíduo mais de direita, porém nacionalista, pode defender um capitalismo mais estatista em alguns pontos. Um sujeito liberal ou libertário defenderá um capitalismo laissez-faire. E por aí vai.

Dentro do capitalismo você terá propostas de direita, de esquerda, de centro, terceira via, socialdemocratas, monarquistas, republicanas, ditatoriais, laicas, religiosas, etc. É difícil até falar em capitalismo no singular. Talvez fosse mais correto falar em “capitalismos”, no plural. Neste caso, qual é exatamente o capitalismo que o Sr. Lopes quer que critiquemos? É o capitalismo daqueles que não se importam contra os pobres? É o capitalismo daqueles que são consumistas e materialistas? Ora, mas isso tudo já é criticado desde as épocas de Isaías, Ezequiel, Jesus e Tiago. Essas críticas transcendem o capitalismo, pois são críticas a posturas que existem desde que o mundo é mundo, desde muito antes de haver capitalismo. Em suma, a proposta de Lopes não faz nenhum sentido. Ele compara um sistema econômico neutro e altamente moldável por cada grupo com um sistema político-econômico-cultural que possui sua própria lógica da redenção do ser humano.

No fim das contas, ou Lopes quer seqüestrar o evangelho para o marxismo (caso ele seja marxista), ou ele quer posar de detentor máximo da sensatez (caso ele seja um desses que quer taxar a todos de bolsonaristas e petistas para se engrandecer sobre eles). Não deixa de ser hipócrita ainda que Lopes peça um texto contra o capitalismo quando ele mesmo faz parte (eu sei que faz) de uma Igreja cristã que mantém editoras, escolas, universidades, hospitais, fábrica de alimentos, emissoras de TV, estações de rádio, sites e por aí vai. O Sr. Lopes acha que a Igreja poderia manter essas propriedades privadas em um sistema genuinamente socialista? Ah, a incoerência dos idiotas de internet!

Mas prossigamos. O Sr. Lopes acusa o Reação Adventista de ter postado defesas de Jair Bolsonaro e depois apagá-las. Como um bom desonesto, Lopes posta um print de buscas que ele fez no Google, onde aparecem dois textos nossos com o nome “Bolsonaro” no título. E outro print mostrando que os textos não existem mais. Ele diz, então: “Facil dizer que nunca defenderam depois de apagarem tudo a respeito”.

Mas note a falta de lógica nessa frase: se os textos foram apagados, como o Sr. Lopes pode afirmar com tanta certeza que eram “defesas” do Bolsonaro? O que Lopes faz é supor que eram defesas. E supor que apagamos por causa disso.

Em vez de tanto supor, Lopes poderia ter perguntado qual era o teor dos textos e o por que apagamos. Bom, já que ele não perguntou, explicamos aqui. Um dos textos se chamava “Bolsonaro é ministro de Deus”. Foi escrito por Davi Boechat, que não faz mais parte do Reação Adventista (espero que logo retorne). O título foi escolhido por ele para impactar. Quem, à época, não leu só o título, mas clicou na postagem, viu o seguinte: Boechat discutiu ali a incoerência de se criticar qualquer governante, quer de direita, quer de esquerda, por falar em punir criminosos. O texto não era uma defesa ao Bolsonaro, mas à função estatal de punir quem viola a lei. O texto dizia ainda que quando o governante não faz isso, está deixando de cumprir a função que tem diante de Deus segundo Romanos 13. Em suma, Bolsonaro é, como Lula e Dilma também foram, ministros de Deus para punir o mal.

O problema é que assim como o Sr. Lopes, há um monte de gente que só lê título, tirando conclusões sem abrir o texto. Isso nos levou a achar melhor retirar a postagem do ar. Mas o conteúdo é tão inofensivo que podemos colocá-la de volta, mudando apenas o título.

O segundo texto apagado se chamava “Leandro Quadros e a defesa do deputado Jair Bolsonaro”. Esse texto também não era uma defesa a Jair Bolsonaro, mas ao Leandro Quadros, que certa feita elogiou uma das ideias de Bolsonaro. Nessa ocasião, Quadros foi criticado por muita gente, acusado de defender Bolsonaro. Ocorre que ele apenas expusera uma concordância muito pontual com uma ideia específica relacionada à criminalidade.

Concordar com algumas ideias de alguém não significa propriamente “defender a pessoa”. Eu, por exemplo, concordo com algumas das ideias de Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella, Padre Fabio de Mello, Chico Xavier, Ed. René Kivitz e até mesmo Caio Fábio. Nem por isso eu “defendo” essas pessoas. Para ser exato, eu discordo da maior parte do que essas pessoas dizem ou do modo como dizem. Quadros, como qualquer pessoa normal, fez um comentário pontual sobre uma ideia que gostava de Bolsonaro, não com intuito de fazer propaganda, mas apenas de complementar algo que ele estava dizendo. Recebendo uma enxurrada de críticas, explicou suas intenções. E nós também fizemos uma defesa de Leandro. Só isso.

Sim, no post em questão reconhecemos que, à época, Bolsonaro tinha alguns projetos de leis com temática relevante e até boas. E, por isso, não havia razão para discriminar alguém que citasse uma dessas ideias. Ora, há bons projetos de lei em todo o espectro político. A petista Maria do Rosário, por exemplo, defendeu um projeto de lei que permite a estudantes faltarem à escola por motivos religiosos sem prejuízo. A lei garante a liberdade religiosa, incluindo para sabatistas. Ponto para Maria do Rosário! Agora, o fato de eu concordar com ela nisso significa que eu sou petista e que concordo com tudo o que ela diz? Só na cabeça de quem enxerga o mundo como um eterno “FlaXFlu”.

É por gente binarista assim, que não consegue interpretar um texto sem ideologizá-lo, que apagamos as duas supracitadas postagens. Como linha editorial, decidimos por evitar ao máximo citar nomes de políticos atuais, a fim de não dar margem para interpretações ridículas. Responder a tais interpretações é cansativo e nos tira um tempo preciso que preferimos utilizar produzindo teologia de qualidade. Conforme o leitor pode conferir em nosso índice de textos, a maioria esmagadora é sobre temas relevantes da teologia. E é esse o nosso foco.

O Sr. Lopes, infelizmente, não está sozinho. Logo após ele, outro indivíduo, de sobrenome Santos, entrou na conversa. Eu sei de quem se trata. É cristão. E é também um desses que quer se colocar como paladino-mor da sensatez e chamar todos de bolsonaristas e petistas. Não poderia perder a oportunidade, não é mesmo? Escreveu:

“O mau caratismo desses bolsonaristas travestidos de liberais me dá nojo. Bando de safados! Lambem o saco do bolsonaro, mas dedicam tempo pra escrever contr um regime que nem é um problema real para o brasileiro.

Dê um chute nas bolas do Bolsonaro e vc quebra todos os dentes desses canalhas. Essa é a igreja evangélica brasileira.:Idólatras de políticos”.

E depois:

“O site babaovista do bolsonaro apagou todas as postagens lambendo as botas do ídolo deles.Além de idólatras essa corja é bunda mole. Kkkkkkkkkkkkk”.

O que é hilário nisso tudo é que eu não acompanho política tem mais de um ano (por cansaço). E pelo pouco que acabo sabendo por amigos, posso dizer que tenho muitas críticas e insatisfações em relação a posturas do presidente Bolsonaro. Não há, em mim, nenhuma disposição para defendê-lo. Estou muito mais preocupado em produzir vídeos teológicos para o canal (o que dá um baita trabalho), gravar podcasts também teológicos com amigos e escrever artigos e livros também a respeito de teologia. Essa tem sido a minha vida. Ademais, já postei diversos textos no Reação Adventista contra idolatria política (à direita e à esquerda), tais como “O cristão e a idolatria política”, “Cristo precisa ser o centro da vida do cristão”, “O Reação Adventista é de direita?”, “Cristo: tudo o que precisamos”, “A grande mídia é de direita ou de esquerda? E o que isso tem a ver com o cristianismo?”, “O cristão conservador e o pêndulo satânico”, “A suficiência da Bíblia e do evangelho de Cristo (ou: idolatria e fé em político não são coisas de cristão)”, “O Homo spiritualis e as religiões políticas”.

Não obstante, para o iluminado Sr. Santos (e também o Sr. Lopes), eu e o projeto Reação Adventista somos bolsonaristas, idólatras, lambe botas, lambe saco, bunda mole e canalhas. Um linguajar e uma postura julgadora dignas de um “santo”, né?

Quero terminar salientando a espécie de desafio que o Sr. Santos faz: “Dê um chute nas bolas do Bolsonaro e vc quebra todos os dentes desses canalhas”. Minha resposta é a seguinte: vai lá. Pode chutar. Minha boca não está lá. Ela está ocupada ensinando sobre Bíblia para quem percebeu que a missão do Reação Adventista é ajudar cristãos que vibram com teologia sólida.